Crónica de Alice Vieira | As mulheres da minha vida

Alice Vieira

 

As mulheres da minha vida
Por Alice Vieira

 

Todos conhecem os homens da minha vida, mas ninguém conhece as mulheres.

Mulheres que foram muito importantes para mim. Na minha infância e na idade adulta.

Vou começar por ordem cronológica, ou seja, desde a minha infância até agora.

São cinco.

1—A minha tia Aurora.

Cai-lhe no colo tinha eu 4 anos.

A tia com quem eu vivia tinha-a contratado para ela me ensinar inglês, mas passado pouco tempo, estava a tratá-la como se ela fosse criada-o que fazia sempre com toda a gente. Mas ela aguentou, gostava muito de mim, levava-me ao parque. Tem hoje 97 anos e está óptima.

2—Mãe Lena

Foi a minha verdadeira mãe. Vivia numa  casa em  Campo de Ourique, onde eu estava sempre caída. Acarinhava-me muito, e eu adorava-a. Ainda por cima eu era da mesma idade do filho, brincávamos muito um com outro, e depois namorámos.

Mas apareceu outro homem na minha vida e foi o fim.

“Tu não podes fazer isso, vocês estão para casar! Já têm uma casa apalavrada aqui perto! Não podes!” Depois pediu-me que esperasse, ele tinha exames no Técnico e se soubesse isso era terrível. Esperei. Depois pediu-me que não lhe dissesse que o tinha trocado por outro. Que lhe dissesse que já não gostava muito dele, uma coisa assim.

alice livro

Mas ainda viveu o tempo suficiente para ver , quarenta anos depois, eu voltar para o filho. Ficou tão contente!

3—A minha prima Maria Lúcia Namorado. Era uma grande jornalista e escritora, e também estava sempre pronta a acolher-me. Fartei-me de dormir em casa dela. Mas também me ensinou que, se eu queria sair de casa, tinha de arranjar trabalho.

4—A minha prima Maria Lamas.

Um dia não aguentei mais—a família a mandar em mim, a censura, a Pide, o Mário Castrim, o homem que eu queria, nunca mais a decidir-se se vinha ou não viver comigo–—fugi de casa, meti-me num avião e fui para Paris. Lembro-me de ter saído do avião e sentar-me num banco a pensar, “e agora, para onde é que eu vou?, o que é que eu vou fazer?”

Depois lembrei-me que a minha prima Maria vivia lá, mas só sabia a morada (onde é que ainda vinham os telemóveis!) mas nem sabia onde é que isso ficava. Lá fui perguntando e lá lhe bati à porta. Ela recebeu-me de braços abertos, havia um quarto vago no hotel mixaruco onde vivia, e lá fiquei.E digo sempre que aquela é que foi a minha verdadeira universidade. Ela era muito conhecida e todos os que iam a Paris,iam lá vê-la. Foi assim que eu conheci o Jorge Amado, o Pablo Neruda, o Nicolás Guíllen e também o António José Saraiva e a Teresa Rita Lopes

E foi então que o Maio de 68 nos caiu em cima. Ainda por cima vivíamos na Rue Cujas, muito perto da Sorbonne, onde tudo rebentara. Aquilo é que foi uma alegria! A deitarmos pedras aos polícias, a insultá-los. Até que a minha prima me disse que era melhor eu voltar para Portugal. Até porque era na nossa terra que devíamos lutar—já que ela não podia: se pisasse solo português, a Pide levava-a. Além disso o Mario Zambujal tinha-me ligado a dizer que o Mário andava doente, já tinha saído de casa. Meti-me no primeiro avião e vim para Lisboa

5—Fhedora Mathias

Era grega, e mulher do então embaixador Marcelo Mathias. Ficou ao meu lado no avião e, passados uns minutos, eu estava a contar-lhe a minha vida toda.

“E sabe se vai estar alguém à sua espera?”

Eu disse que não sabia.

“Então fazemos assim. Se estiver, tudo bem, se não vai para minha casa e amanhã telefona-lhe”

Estava. Ela pediu-me para os apresentar.

“Trate bem dela!”, disse-lhe. E puxando-me à parte diz “mas amanhã telefone-me a dizer como estão as coisas”. E fez-me telefonar três dias seguidos. Ficámos amigas e continuámos a telefonar muitas vezes só para conversarmos

Fui mesmo uma rapariga com sorte!

 

Alice Vieira

 


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


 

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