Crónica de Licínia Quitério | Relógios

OLYMPIA

De ontem e de hoje | Relógios

por Licínia Quitério

 

Medir o tempo que passa, medir o tempo que falta, que nos falta, desde sempre foi um desafio, uma necessidade, uma tentação. E foi o Sol e foi a água e foi o vento e foi a areia e tudo e de tudo os homens se têm servido para melhor saberem calcular a medida de seus trabalhos, se possível a medida de seu tempo futuro.

Pelos milénios havidos, foram os homens inventando e construindo instrumentos que de rudimentares passaram a complexos, a que genericamente foram chamando relógios ou horológios, palavra cujo étimo denuncia o lugar das horas.

Verdade, verdadinha, do que eu queria mesmo falar era de relógios e da minha ligação com eles. Em tempos há muito idos, lá em casa havia um relógio de sol de bolso que pertenceu ao meu avô. Objecto raro, uma caixinha de madeira dobrável que continha uma bússola, um fio de linha com um grão de chumbo na ponta e uma rosa dos ventos gravada na madeira. Divertido era quando o meu pai me fazia ver a sombra do fio que dizia ele  nos indicava os pontos cardeais. Foi a minha primeira lição de astronomia.

Havia o relógio que o meu pai trazia no bolso do colete preso por um uma corrente. À noite punha-o em cima da mesinha de cabeceira, não sem antes lhe dar corda. Às vezes deixava-me rodar o botão que havia de fazer enrolar a corda, mas com muito cuidado, não fosse quebrar. Portei-me bem.

Era já crescidinha quando tive o meu primeiro relógio. Era bem bonito, com  o seu quadro de metal cor de oiro, sua pulseira (na altura dizíamos bracelette, à francesa) de couro castanho. Eu passava muito tempo a dar o jeito ao pulso, a ver que horas eram, melhor, a mirar o meu lindo relógio. Acontece que não me contentei em mirá-lo e, com a grande curiosidade que sempre tem sido minha qualidade e meu defeito, logo descobri como abri-lo e aí, sim, pude ver lá por dentro aquelas rodinhas em movimento, a fazerem ouvir um suave tic tac. Com o encanto, chegou a tentação de tocar o maquinismo, senti-lo e não resisti. Parece que o maquinismo não gostou da minha ousadia e, mal eu tinha começado a inspecção com a ponta do dedo, um fio saltou, desenrolou-se e não tive maneira de o enrolar de novo.

Mais tarde, soube que aquele fio se chamava cabelo, segundo o meu pai que repetia a palavra enquanto me ralhava, ralhava, que eu não tinha nada que mexer onde não devia. Envergonhei-me.

Muitos e variados relógios depois, um outro homem da casa dedicou-se a construir um relógio de sol na parede do quintal, depois de muitos e aturados cálculos de geometria, trigonometria, astronomia, sei lá eu que mais, que tudo lhe interessava, tudo queria saber e experimentar, tão curioso quanto eu, mas muito mais produtivo.

Nesta época digital, tenho relógios por todo o lado, mas agora pouco me interessam, porque o meu tempo já é outro e não me importa medi-lo.

      Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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