Crónica de Alice Vieira | Falando de hinos

Alice Vieira

Falando de hinos
Por Alice Vieira

 

Sou perita em hinos.

Isto porque o tio que me criou , assim  que chegava um dia especial—com direito a hino–passava a tarde para lá e para cá no grande corredor da casa , a cantar.

Para ele havia sempre três hinos que nunca falhavam: o hino da Restauração (1 Dezembro), a Portuguesa (dia 5 de Outubro), e o Hino da Maria da Fonte  (27 de Março)

E era vê-lo, ateu empedernido, aos berros no corredor no dia 1 de Dezembro

“O Deus de Afonso em Ourique

Nos livre, nos dê a fé…”

No 5 de Outubro era diferente. Primeiro chamava-nos para nos contar todos os males da monarquia, e como a revolução tinha sido necessária. Depois arregaçava a perna esquerda das calças para nos mostrar as cicatrizes que tinha desde os tempos em que, ainda miúdo, participara nos combates na Rotunda.

E depois explicava que tinha sido nesse dia e nesse ano que o hino nacional mudara para o que temos hoje.

Nós já sabíamos aquilo de cor e salteado, mas tínhamos sempre de ouvir tudo, do princípio ao fim.

E lá marchava ele pelo corredor aos berros.

“Às armas! Às armas

Sobre a terra e sobre o mar”…

Nunca percebi porque é que os vizinhos nunca se queixaram da barulheira.

E o 27 de Março, então, era diferente de todos, porque havia sempre uma grande lição de história (a mesma todos os anos, claro), depois de ele protestar por aquele dia não ser feriado.

E lá vinha a Maria da Fonte, e a revolta do Norte , no século 19, contra os Cabrais (que a gente nunca soube quem era, mas também nunca perguntou,  senão o discurso não acabava mais)   E mais uma vez a marcha no corredor a tarde inteira:

“Viva a Maria da Fonte

Com as pistolas na mão

Para matar os Cabrais

Que são falsos à nação!

Lindo, lindo…Era o hino de que nós todos gostávamos mais, porque andávamos atrás dele no corredor e depois atravessávamos a sala  e íamos até à varanda, e regressávamos ao corredor—com a minha tia na cozinha  sempre a barafustar e a chamar-nos malucos…

E pronto, era difícil que eu não ficasse a gostar de hinos e a sabê-los de cor e salteado.

Ora então tomem lá nota dos hinos que eu sei e, se algum dia , sei lá, numa aflição, precisarem de algum é só dizer.

Sei o Hino da Mocidade Portuguesa—Masculina…

“Lá vamos, cantando e rindo,

Levados, levados sim,

Pela voz de som tremendo

Das tubas, clangor sem fim…”

–… e  Feminina

“ Mocidade Lusitana

Herdeira de Portugal

Nossa herança nos foi dada

Para ser por nós guardada…”

E sei os hinos de Portugal  e da França (ambos a apelar à revolta), de Inglaterra (a apelar à pompa e circunstância ) , dos Estados Unidos ( a apelar à mão no peito )e do Brasil (a apelar ao samba)

Claro que sei o hino do Benfica—há lá coisa mais bonita que

“ as camisolas berrantes

Que nos campos a vibrar

São papoilas saltitantes  “

E também sei o hino do Sporting, mas passo à frente.

E sei a Internacional e o hino do PCP, embora não pratique

E sei hinos que hoje mais ninguém  sabe como, por exemplo, o hino das Termas de Caldelas, que todos os aquistas sabiam nos anos 50

“Águas correntes

Ou frias ou quentes,

Conforme o freguês

Caldelas…”

E pronto. Como diz o povo, cada um é para o que nasce. Se calhar eu nasci, não para a música ,como o José Cid, mas para os hinos.

Há coisas piores,  apesar de tudo.


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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