Crónica de Alice Vieira | Falando de avós

ALICE VIEIRA
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Crónica de Alice Vieira | Falando de avós

 

FALANDO DE AVÓS
Alice Vieira

 

O Prof. João dos Santos, que morreu em 1987 aos 75 anos, foi dos grandes psicólogos e psiquiatras deste país, um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, —sendo mesmo considerado o criador da Saúde Mental Infantil em Portugal. Com ele e a partir dele, houve uma completa viragem na psiquiatria, houve um novo olhar para os problemas infantis, e as relações com as crianças passaram a ser encaradas de outra forma.

Ainda o conheci porque ele ia várias vezes ao colégio onde andavam os meus filhos. Falava com as crianças e as crianças falavam com ele.

E de tudo o que lhe ouvi, passados estes anos todos, guardo na memória uma das frases que ele repetia muito:

“Nenhuma criança pode viver sem ter uma avó e sem ter uma aldeia. E se as não tiver, terá de inventá-las”.

E essa frase ficou-me logo gravada na memória e no coração porque tinha sido exactamente isso que eu em miúda tinha feito. Sem saber que alguém, tão importante, haveria um dia, tantos anos mais tarde, de explicar, por palavras tão certas, tudo o que eu sentia.

Quando eu nasci a minha avó materna já tinha morrido. E eu não tinha grandes relações com a paterna, que vivia longe e que complicadas zangas familiares tinham afastado do meu convívio. Lembro-me de uma vez ou outra ter estado com ela, e de ela me beijocar repenicadamente, e os beijos picavam muito e deixavam-me a cara toda molhada de saliva. Mas não fazia mais nada que me pudesse entusiasmar, ou ficar a gostar dela.…Era um ritual, pronto.

Mas muito cedo descobri que precisava de muito mais do que isso. Precisava de uma avó.

De uma avó com quem pudesse falar, que não fosse obrigatório cobrir de beijos—mas que me desse colo, que me abraçasse, que falasse comigo. O colo e o abraço foram sempre para mim muito mais importantes.

E anos mais tarde também o professor João dos Santos havia de me explicar que os netos muito mais facilmente contam coisas aos avós que não contam aos pais—e vice-versa: os avós também muito mais facilmente contam coisas aos netos que não contam aos filhos. Dizia ele que haver uma geração de permeio faz toda a diferença.

E eu sempre senti isso sobretudo em relação à minha neta mais velha, talvez por ser a mais velha e ter alguma diferença de idade dos restantes irmãos. Ela sabe tudo de mim, eu sei tudo dela.

Como eu também sabia da avó que inventei em miúda. E ela de mim, claro.

Em termos de parentesco, essa “avó” era uma prima muito, mas muito afastada. Mas se não havia grande proximidade de sangue—havia total disponibilidade para me ouvir, para me dar colo, para me abraçar, para estar ao pé de mim mesmo sem dizer nada.  E só quando se gosta muito de uma pessoa é que se consegue estar ao pé dela em silêncio.

Encorajou-me a tomar atitudes de que eu tinha receio. A seguir caminhos quando eu estava indecisa.

Mas também me impediu de fazer muita asneira.

Foi o meu porto de abrigo até morrer—era eu então já adulta.

Não sei se a beijei muito, se calhar não, e isso não fez diferença nenhuma.

E se hoje aqui falo destas coisas é porque aqui há tempos surgiu uma grande polémica, que de vez em quando recordo, quando um professor, num programa de televisão, apareceu a dizer que não se devia obrigar as crianças a beijar os avós. Pronto, o senhor se calhar foi um bocado infeliz na maneira de se exprimir– mas eu, confesso, de cada vez que penso nisso, só me lembro dos beijos obrigatórios à minha a avó de sangue, e os que se calhar nunca dei à avó que escolhi, e que me ajudou a ser a pessoa que sou hoje.

 


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