Crónica de Alice Vieira | Teatro dos acontecimentos

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TEATRO DOS ACONTECIMENTOS
Alice Vieira

 

Há anos, trabalhava eu ainda no “Diário de Notícias”, num Agosto também muito quente, rebentou um grande incêndio em Oleiros. Claro que nem as temperaturas nem o incêndio se podiam comparar com os de agora—mas, de qualquer modo, era um grande incêndio. Tão grande que o nosso chefe Pires me telefonou de madrugada para casa para eu ir rapidamente para o jornal, porque era preciso marchar para Oleiros.

Lá fomos, eu e o fotógrafo, lá andámos pelo incêndio, lá fomos ouvindo as pessoas, lá fomos transpirando e bebendo água, até que, finalmente, o chefe dos bombeiros declarava o incêndio extinto. Ainda hoje, à distância destes anos todos, me lembro do seu ar feliz a dar-nos a notícia.

Sentámo-nos todos por ali, a recuperar, e lá voltámos para o jornal.

Quando chegámos ao jornal, o chefe comunicava-nos que o incêndio de Oleiros se tinha reacendido.

Peço telexes, de certeza que as agências já tinham mandado informações—mas garantem-me que não há nada. Berro, esbracejo, como não há nada? De certeza que há telexes a chegar! O Sr. Albano, contínuo, jura, ”menina Alice, não há nada para a sua secção”. Naquela altura eu estava na então chamada “Informação Geral”, onde se tratava dessas coisas todas.

Deixo passar mais algum tempo e volto a insistir, é impossível que não haja um monte de telexes sobre o incêndio, mas ele “nada, menina Alice, para a sua secção não há nada”

É então que me aparece um camarada da secção de “Arte e Espectáculos” com um ar intrigado.

“Ó pá, deixaram este monte de telexes na minha secretária, mas não são para mim, de certeza…”

Agarro-os—e descubro que são todos a darem notícias do incêndio de Oleiros.

Quem então separava todos os telexes para depois serem enviados para as diferentes secções era um departamento chamado “Preparação”. Entro por lá adentro, furibunda, “mas que é que passou pela vossa cabeça para mandarem os incêndios para a “Arte e Espectáculo”?

Olham todos para mim como se não entendessem nada do que eu lhes dizia.

“Ná… Não chegaram nenhuns telexes de incêndios…”

Mando com os telexes para cima da mesa deles.

“Ah, não? Então o que é isto?”

Eles pegam nos telexes, miram, remiram, tornam a remirar, até que um deles remata:

“Então, o título dos telexes é “Teatro dos Acontecimentos”…Para onde é que a gente havia de os mandar senão para a secção dos “Espectáculos”?

Tantos anos depois, de cada vez que eu oiço falar em “teatro dos acontecimentos” é sempre disto que eu me lembro.

 

 

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