Crónica de Alice Vieira | Ele há cada palavra…

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Ele há cada palavra…
Alice Vieira

 

Se depender de mim, os correios nunca irão à falência e hão-de ter sempre vida longa e próspera.

Não há-de haver muita gente, concordo, que, nestes tempos websummíticos  escrevam cartas e postais todos os dias. Mas MESMO todos os dias. E muitos.

Ainda não há muito tempo, Novembro era o mês em que eu inundava as duas estações de que “gasto” em Lisboa, com cartas e encomendas para amigos que viviam em terras  para  lá do sol posto.

Das primeiras vezes, o funcionário olhava para mim e , baixinho,  perguntava:

–Acha que chegam lá?.

Eu acalmava-o, que sim, que chegavam, que eram capazes de demorar um mês ou mais mas chegavam, que era preciso, no caso das encomendas, pôr tudo dentro de latas porque senão os ratos roíam tudo—enfim, essas coisas que só a experiência ensina.

Depois habituaram-se.

E , por esta altura , eram já eles que perguntavam “então, e as encomendas para o Darfur e para o Tchad?”

Mas agora os meus amigos que trabalhavam no Darfur e no Tchad (missionários, todos eles…) foram colocados noutras paragens. O mais complicado que agora tenho é a África do Sul, porque nunca se sabe quando os correios funcionam…

Digamos que voltei um pouco à normalidade : montanhas de cartas e postais e encomendas…sim, sempre, mas para lugares aceitáveis.

Por isso há dias , quando cheguei ao balcão da Patrícia (claro que já nos tratamos todos pelo nome…), pensei que, à minha frente, estava alguém a mandar uma carta também para um sítio estranho, tantas eram as perguntas e as hesitações do rapaz:

–E acha que está bem?—perguntava ele, apontando para o envelope em cima do balcão.

–Está!—garantia a Patrícia.

–E chega lá?

–Claro!

Foi aí que tentei espreitar, pensando que, com a minha experiência, pudesse ajudar o infeliz a mandar cartas para o fim do mundo.

Mas, para meu grande espanto, a carta ia para Coimbra.

Está bem, de Lisboa a Coimbra ainda é um esticão, mas caramba!, tantas hesitações?

A Patrícia, ao princípio. até pensou que o rapaz estava a brincar com ela e gracejou:

–Então não há-de chegar??  Acha que a roubam pelo caminho?

Mas rapidamente viu que o rapaz não estava para brincadeiras. Aquilo era mesmo a sério.

–Mas já viu bem o envelope?—continuava ele.

–Já!

–Não falta nada ?

–Não! Está tudo bem!

–Tudo mesmo?

Aí a Patrícia começou a ficar ligeiramente incomodada, até porque já havia mais umas três pessoas na bicha, todas a espreitarem pelo ombro do rapaz a ver se descobriam a causa de tamanha inquietação.

— Está tudo bem, sim…Mas afinal o que é que o preocupa?

O rapaz encolheu os ombros, coçou a cabeça…

–Sabe , é que lá no escritório disseram-me para não me esquecer de escrever uma coisa aí no envelope…e eu esqueci-me mesmo…E não sou capaz de me lembrar…É uma palavra esquisita…Nem sei o que é que quer dizer… Mas eles insistiram…Para eu escrever… “Remessa”? Seria?

— “Remetente” ? –sugeriu a Patrícia.

Os olhos do rapaz iluminaram-se.

–Isso!! É isso mesmo!

Pausa.

–Nunca tinha ouvido essa palavra!

Pausa.

–E isso é o quê?  Ele há cada palavra, santo Deus…

E pronto, lá ficaram os dois a escrever o remetente na carta, a Patrícia a rebentar de riso, as pessoas na bicha a olharem para o ar para também não desatarem à gargalhada, e o rapaz sempre a abanar a cabeça, e a repetir “remetente… ele há cada palavra santo Deus…”

 

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