Crónica de Alice Vieira | Livros estragados

Alice Vieira

 

Livros estragados
Por Alice Vieira

 

Como falei aqui nisso, quero hoje dar-lhes conta da minha grande felicidade: o meu amigo Mo, do Bangladesh, que ao princípio pensámos que se tinha suicidado mas mais tarde descobrimos que tinha voltado para a sua terra, de que tinha muitas saudades—regressou ontem!! Foi uma festa! Aquilo foram abraços e socos nas mãos que nunca mais acabava!  Segundo confessou, já não aguentava mais viver no Bangladesh…A namorada ainda não pôde vir mas virá depois. (Aqui para nós, acho que não lhe faz muita falta…) Fartou-se de rir quando lhe falei do suicídio e agora, quando fala comigo, diz  sempre “daqui fala o morto!”  (fui eu que lhe ensinei…)

Mas mudemos de assunto.

 

O tempo passa tão depressa.. Aquilo que em tempos toda a gente sabia, hoje ninguém sabe do que se trata… Num dos meus livros para crianças eu falava de um “telegrama”. Era um poema intitulado  “Telegrama do Príncipe para a Branca de Neve”—e nenhum miúdo da sala de aula sabia o que era. (Vá lá, sabiam quem era a “Branca de Neve” o que, nos tempos que correm, já não é mau…)

Aqui há uns tempos estava eu em Lisboa e entrei numa daquelas velhas lojas no alto da Calçada do Combro.

Uma loja que é uma tabacaria mas também retrosaria,  vende livros antigos, revistas  que ensinam a bordar  e a fazer malha, postais, etc.

Estava eu a escolher uns postais  (sim, eu ainda escrevo muitos postais e cartas, por mim os correios nunca irão à falência) quando entra uma jovem muito irritada, com um livro na mão.

–Os senhores têm de ter mais cuidado, para não venderem coisas estragadas! Eu moro longe e tive de cá vir para devolver este livro estragado. E, claro, quero  o meu dinheiro de volta.

O senhor pegou no livro, olhou para ele com muita atenção, virou-o de cima para baixo, abriu-o, folheou-o e não viu onde estava o estrago. Lá do meu canto eu também olhei e pareceu-me um livro perfeitamente em bom estado.

–Desculpe, mas não vejo onde é que ele está estragado!

A rapariga até berrou:

–Não vê? Só se for cego!  Ora diga-me lá quem é que consegue ler este livro?!

Foi então que o senhor percebeu. Era uma edição antiga em que as folhas ainda vinham juntas, e era preciso uma faquinha para as abrir..Uma faquinha de abrir livros, era assim que se chamava.

Com muita calma o senhor explicou tudo muito bem explicado à rapariga. Ela franziu o sobrolho:

–Uma faca ?? Tem a certeza? E a seguir consegue-se  ler?!

Depois de algum tempo lá se foi embora -mas via-se que não tinha acreditado em nada  do que tinha ouvido.

Eu olhei para o senhor—e desatámos a rir, que era a única coisa que podíamos fazer.

Ai, estou mesmo velha…


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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