Crónica de Licínia Quitério | OLYMPIA

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por Licínia Quitério

 

Um dia destes deparei com um texto de Frederico Lourenço publicado por ele no Facebook, excelente artigo, como não podia deixar de ser, e dele respiguei passagens que aqui transcrevo, com a devida vénia:

  • Camões foi o primeiro autor europeu a escrever um poema de amor dedicado a uma mulher não europeia.

  • Camões, como sempre, partilha com Vergílio uma sensibilidade especial. E o seu poema dedicado a Bárbara segue a defesa vergiliana da beleza negra.
    “Pretidão de amor, / tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor. / Leda mansidão / que o siso acompanha; / bem parece estranha, / mas bárbara não.”

A mesma publicação é ilustrada com a imagem do quadro Olympia de Edouard Manet.

Ora, atentando na figura de Bárbara, escrava negra, a tal “cativa que me tem cativo” com quem o poeta se terá perdido de amores, e porque lembrança puxa lembrança, eis que recordo, a propósito, um pequeno texto que escrevi há muito:

“Uma reprodução da Olympia, de Edouard Manet, acompanha-me por várias casas, em vários tempos. É uma insignificante estampa de loja de museu, bem infiel ao original que me atraiu, mas assim mesmo a guardo, como registo a conservar. Enigmática é aquela mulher-criança na sua nudez serena. A pulseira, a fita que lhe ornamenta o pescoço, a flor vermelha na orelha, a chinela no pé, são tudo o que é permitido ao seu corpo branco e jovem, ali exposto, proposto, vendido. Marcante a presença da criada negra, opulenta, na sua roupagem branca, trazendo de braçada o ramo de flores, porventura chegado de um licitante daquele corpo belo e triste, ou, quem sabe, de um apaixonado anónimo, tímido e sofrido. O gato preto, elemento intruso e misterioso, é quase uma mancha adivinhada a tocar os lençóis. Tantas histórias o quadro já me deu. Tantas outras me negou. Olympia, reclinada no desalinho do leito, humilhada e poderosa, persiste em olhar-me, desafiar-me. E eu cedo, fixo-a também, mas nunca por muito tempo. Ocorre-me um título — Escrava branca, Escrava negra —. O gato, confesso, causa-me algum incómodo.”

“Hors-texte”: Uma criatura que tinha lido o texto, quando olhou o quadro na parede da minha casa, porque lho quis mostrar, exclamou: Ah é isto!

E acrescentou: Uma reprodução baratucha…

Adivinhei-lhe a comiseração: Coitada, pelo preço não conseguiu melhor.

Há criaturas assim.

Olympia permaneceu impávida, sem tocar as flores. O gato lá continuou.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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2 Thoughts to “Crónica de Licínia Quitério | OLYMPIA”

  1. Fernando Amaral da Silva Amaral da silva

    Com a qualidade a que a Licínia já nos habituou. Pega numa pétala e com ela faz um ramo

  2. Clara Pimentel

    E assim fica provado como uma «reprodução baratucha» pode dar tanto aos olhos de quem sabe ver e sentir e apenas oferce o veneno da inveja e da má educação a quem só liga à etiqueta com o preço.
    Texto absolutamente esplendoroso, Licínia. Obrigada por partilhá-lo connosco.
    Clara

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