Crónica de Licínia Quitério | Passeios de Domingo

Licinia Quiterio

 

De ontem e de hoje – Passeios de Domingo
por Licínia Quitério

 

Ela era uma mulher ruiva, com cabelos naturalmente encaracolados e revoltos, com a pele pejada de sardas a mancharem o fundo leitoso. As ancas possantes, os seios ainda firmes, os artelhos finos de cavalo de raça, davam￾lhe um ar picante que provocava olhares gulosos dos homens do bairro, pouco habituados a mulheres como a Elvina do Marreco. Como resumia o malandreco

do empregadito do Café: “Apanhá-la…”
Davam curtos passeios ao Domingo, de braço dado, pelos jardins da Cidade que sempre acolhem os solitários, seja a velha senhora de bengala, com um traço irregular de bâton, sejam casais arrastando inquebráveis rotinas, sejam crianças birrentas que mais tarde dirão que tiveram infâncias felicíssimas, sejam os inveterados jogadores de sueca, ali a batê-las, como se arriscassem
os anos sobrantes. A todos os jardins acolhiam e a ninguém perguntavam ao que vinha nem quem era. Alguns tinham pavões que abriam o leque, num fragor inesperado e afirmativo, e era como se uma deusa por momentos se mostrasse esplendorosa de formas e de cores, a dar um toque raro de beleza àqueles Domingos tão sem graça.
João e Elvina compravam pacotes de amendoins e pevides de abóbora, medidos em barricas de madeira que em tempos de galhardia tinham guardado ovos moles. Sentavam-se em banquinhos escolhidos, à sombra de árvores frondosas, com a condição de que não assentassem em terreno inclinado. Uma vez, tinham caído nessa e, à custa do esforço continuado de contrariarem a obliquidade do assento, tinham chegado a casa com umas dores nas “cruzes” que durante dias os impediram de retomar a perpendicularidade conveniente.
Esta exigência obrigava-os por vezes a estratégias dissimuladas, descrevendo passadas sinuosas e súbitos recuos e avanços no terreno, para serem os primeiros a alcançar o cobiçado assento. Finalmente instalados, trocavam monossílabos e poucas, pouquíssimas frases completas. Nos Domingos deVerão, por volta das seis da tarde, João perguntava: “O que é o jantar?” Elvina respondia, com um certo fastio nos olhos cor de avelã: “Os restos do cozido do almoço.” João ordenava: “Então vamos.”
Iam. Estava cumprido mais um passeio de Domingo.
Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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