Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Marinaiça

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De ontem e de hoje – Marinaiça
por Licínia Quitério

 

A Marinaiça Alexandre está agora menos  mal.

Era a do meio de três moças. O pai, Manuel Alexandre, morreu com o “saluço”. Naquela altura ainda não sabiam duma erva que se dá a cheirar ao doente e fica curado. Depois a mãe deu-a a uma senhora já com uns anitos que vivia num monte vizinho, que era mesmo dela e que só tinha uma filha já mulher. “Vocemecê podia dar-me uma das suas moças!”. Foi ela, a Marinaiça, a do meio. Montou-se no burro com a senhora e foi. A mãe não teve pena. Todas passavam fome. Assim era menos uma.

Foi uma sorte. A senhora tratava-a bem. Trabalhou sempre muito, está claro, mas depois ficou a ganhar. Quando a Senhora morreu deixou-lhe metade da territa.

Agora a Marinaiça vive bem, desde que o marido morreu. Foi há talvez quatro anos. Não sabe bem, nem lhe interessa. Só sabe que já devia ter ido há muito mais tempo. Bêbedo. Sempre bêbedo. Uma vida de inferno. Partia tudo, levava tudo de casa, batia-lhe.

Vai sempre votar nas eleições. Tem votado no que lá está. Não tem sido mau para a terra e arranjar-se todos eles se arranjam. Se ela lá estivesse fazia o mesmo. Ora… Até o ministro que lá está em Lisboa se governa. É assim. É preciso é que não haja guerras.

A Marinaiça tem a reformazita mais a metade da do homem que se foi.

Chega-lhe bem. Ainda põe alguma coisita de lado que quando vem uma doença é que são elas.

Mora numa casa que é de uma das duas filhas. Fez obras há pouco. É pequenita, mas jeitosa. Fica ao lado da casa velha, pegada à figueira. Tem quatro casinhas e um quintal nas traseiras. É verdade. A Marinaiça Alexandre nunca viveu tão bem. Vai fazer 84 em Janeiro. Tem a frieza no rosto e nas palavras de quem conheceu sempre o pior. Não fora o joelho, a falta de vista e sentir-se muito só, estaria mesmo feliz. Mas pronto. Quando está mais aborrecida, sai em busca de alguém que a oiça desfiar a vida como se não fosse a sua. Conta-a assim de rajada e nela cabe a história de quase um século do seu país. Como quem conta episódios de uma telenovela. Não exactamente. Sem paixão. Só faz questão de fazer valer o apelido: Marinaiça Alexandre. Como o pai: Manuel Alexandre.

Licínia Quitério

 

 

 


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados oito livros de poesia – A decadência das falésias; Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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2 Thoughts to “Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Marinaiça”

  1. tb

    Um prazer de ler histórias da vida real, com a mestria a que a Autora já nos habituou.
    Gostei muito!
    Um beijinho.

  2. Clara Pimentel

    A Escrita de Licínia Quitério já só conseguirá espantar-me se algum dia ela escrever algo de pobre qualidade. Como é incapaz disso – mesmo que o tentasse por brincadeira – já não me surpreende o encanto poderoso que sempre snto quando leio as suas palavras.

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