Crónica de Alexandre Honrado – Tenho uns polegares enormes

Abril entre cravos: Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
Tenho uns polegares enormes

Na ausência de equipamentos eletrónicos e mesmo de canais televisivos abundantes como bactérias desafiantes do sistema imunológico, recordo uma vez mais como a minha infância foi recheada de leituras e de aventuras ao ar livre, de conversas infinitas e de um imaginário estimulado pela capacidade de criar num mundo abstrato novos mundos para o mundo que, pensando bem, se tivessem resultado, seriam hoje equivalentes a um outro mundo, melhor e muito mais divertido.

Aventurei-me, desde muito cedo, com Corto Maltese, Sandokan o tigre da Malásia, Mathias Sandorf ou Ársene Lupin o ladrão de casaca,  estremeci com Crime e Castigo, ou com o erotismo d´O Vermelho e o Negro ou o d´A Cartuxa de Parma, sofri a cegueira de Miguel Strogoff o correio do Tzar, apaixonei-me por Lou Andreas-Salomé, quis pensar como Sartre e tantos outros. Mas também perdi corridas em carrinhos de esferas, fiz flautas de segmentos de bambu, acampei sob as estrelas, enamorei-me.

Cheguei aqui. Não sou melhor mas somo as minhas verdades.

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Uma dessas verdades é que as novas tecnologias desenvolveram-nos os polegares, alguns reflexos imediatistas e na ótica do utilizador, enfim, a capacidade de criar atalhos para algumas dúvidas, a preguiça, o saboreado ócio,  lúdico, a ilusão de que sabemos coisas porque contactamos com elas superficialmente, a miopia precoce e outras lesões do globo ocular, a apatia, e esse crescimento dos polegares retirou-nos cultura e sabedoria trocando-as pelo precipício rápido nas respostas. Ignoramos, felizes, em 5G, que é 100 vezes ais rápido do que  o 4G, na prática o streaming a 4K e 8K é feito em segundos, sem falhas, com uma qualidade nunca vista e em qualquer lugar, servindo mesmo aqueles que não têm onde cair mortos, os imbecis, os agressores do próximo, os que não conseguem abrir a braguilha sozinhos ou decorar uma matéria escolar, os destruidores de afetos, os assassinos nossos contemporâneos (e por pouco não escrevi “nossos iguais”), os que direcionam os drones da destruição e nem sequer descobrem o caminho mais dócil para aceitar o próximo e as suas pródigas diferenças.

Noto que eu também tenho os polegares grandes de mais para o que era suposto servir-me. Não vou preocupar-me até ao momento gélido em que tenha de usar luvas.

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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