Crónica de Jorge C Ferreira | A Revolução

Crónica

 

A Revolução
por Jorge C Ferreira

 

O processo revolucionário em curso percorria o seu sinuoso caminho. As reuniões eram intensas. Discussões intermináveis entre baforadas de fumo. Os cigarros sem fim. Barbas e cabelos grandes. As cabeças a explodirem de ideias. Uma ebulição de novidades. A liberdade a ganhar o seu espaço. Os direitos dos trabalhadores a aparecerem. Alguma dignidade.

As colagens de cartazes. A propaganda. As palavras de ordem na boca dos poetas e nas paredes de Lisboa. O fim da guerra. As Mães de luto que continuariam a chorar os seus filhos. As manifestações. As organizadas e as espontâneas. Muita rebeldia que não se apaziguava. Um desassossego que incomodava. A liberdade de informar e de dizer. Por vezes, algum desaforo. O normal nestas situações. Tinha sido muito tempo de bocas amordaçadas.

O canto livre. As canções da nossa vida. As que todos sabíamos cantar. Os coros enormes. “A cantiga é uma arma…” Todos cantavam e viam-se sorrisos nas bocas. A luta também no trabalho. A luta por melhores condições de vida. Ter a noção da força do trabalho. Fazer valer os nossos direitos. Uma flor atravessada na boca.

desaguo

As reuniões que continuavam. Os sindicatos e a aprendizagem da liberdade. Os partidos e a militância. Tanta gente enganada. Tanta gente a querer enganar-nos. A responsabilidade de consolidar as liberdades e os direitos. Tínhamos de aprender a ser cidadãos de corpo inteiro. Saber dos nossos direitos e deveres. Gastar um pouco da vida numa coisa importante. Descer a Avenida e saudar a vida. Só em liberdade a vida vale a pena.

Saber que a liberdade não são apenas frases que se ouvem e se escrevem em folhas de papel sem sentido. As liberdades devem ter conteúdo. Devem incluir todos os direitos e todas as necessidades para se ser livre. Devem incluir tudo o que necessitamos para ter uma vida digna.

Depois das reuniões, de muitos cigarros, era tempo de ir jantar. O bairro alto era um lugar muito escolhido. A mesa era o intervalo da revolução. Ali se falava da vida e das alegrias e angústias. Essas coisas que vivem e convivem com todos nós. Ali nos despíamos da política e da conversa circunscrita.

Muitas vezes havia um bar à nossa espera. Um bar com um piano mal afinado e um pianista que ninguém ouvia. Um lugar onde aparecia de tudo. Loucos saudáveis, outros que pensavam ainda viver na clandestinidade e alguns que não entendiam nada do que estava a acontecer.

Foi aí que te conheci melhor. Foi numa rua do Príncipe Real que te dei o primeiro beijo. Um beijo que soube a mil vidas. Um beijo sentido e prolongado. Um beijo que acabou na minha casa de vida solitária. Foi aí que começou a nossa vida. Foi aí que começámos um caminho que ainda continua. Somos diferentes. Mas, em muitas coisas somos os mesmos. Não vergamos. Continuamos a lutar por um mundo melhor. A nossa flor é o cravo e é vermelho.

Como diz o cantor:

“…só há liberdade a sério quando houver

A paz, o pão

habitação

saúde, educação…”

Vamos continuar.

 

«Esses tempos! Vocês tão novos, lembro-me bem. Sempre inquietos.»

Fala de Isaurinda.

«Tempos únicos. A vida era uma pressa. Tanto por fazer.»

Respondo.

«Pois, e alguma maluqueira também.»

De novo Isaurinda e vai, uma gargalhada na mão aberta.

Jorge C Ferreira Dezembro/2021(326)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A Revolução”

  1. Manuela Moniz

    Que crónica linda, Jorge!
    Que memórias inesquecíveis de um tempo que marcou, para sempre, as nossas vidas.
    Tudo vivido tão intensamente, numa explosão de enorme felicidade.
    Que tempo esse, em que um beijo, em plena liberdade, selou o começo de um amor para a tua vida toda. Que bonito!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Minha Amiga, minha Ilha. Foi um viver muito intenso. Foram muitas mudanças na vida e na sociedade. Foi toda uma aprendizagem. Abraço

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    É sempre um encantamento lê-lo. Lindo e sentido texto, sempre a pensar no bem-estar de todos. Obrigada, querido escritor.
    Só quero deixar um Voto. Que na terra que nos dá o pão de cada dia, continuem a brotar muitos e muitos, Cravos Vermelhos. Liberdade sempre!
    Que por longos anos, continue a lembrar, o bonito momento vivido na Rua do Príncipe Real.
    Grata sempre, pela sua escrita ímpar. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Temos de cuidar de todos os cravos vermelhos que vêm embelezar a nossa vida. É uma minha Amiga tão doce e generosa. Grande abraço

  3. Coutinho Eulália Pereira

    Crónica maravilhosa. Mistura de sensações. Viagem no tempo. Que privilégio viver em plena juventude, a chegada da liberdade. A revolução dos cravos. As canções que todos cantávamos.sorrisos rasgados.
    Fim da guerra colonial. Reuniões e plenários, na defesa de direitos dos trabalhadores, esquecidos durante tantos anos. Talvez com alguns exageros, por vezes, mas assim se conheceu a liberdade.
    Tempos inesquecíveis para quem os viveu intensamente.
    Vamos esperar que as memórias não se extingam.
    Obrigada amigo por esta bela viagem no tempo.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Foi um viver que ficará para sempre gravado na nossa vida. Foi intenso e belo. As vitórias e as derrotas. Foi uma sorte vivermos tanta coisa. Abraço grande

  4. Isabel Campos

    Tempo bonito, que importa, para nós e para o mundo.
    A certeza de teres construído o presente. Tu e outros. O presente também se constrói com o passado.

    Beijinhos
    .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Tempo de mudar. Tempo que faz falta. A aventura e o Porto sentido. Grande abraço.

  5. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    Fala de Isaurinda.
    ” O menino Jorge tem cada uma…
    Lá vai buscar esses velhos tempos.
    E eu, uma moçoila, numa roda viva. A cabeça a andar à roda. Era tudo novo para mim…
    E a revolução? Ai, Jesus, foi tão bom! Tantos festejos nas ruas…
    O povo sem medo!
    Depois, eu bem que o sentia, saía à noite e voltava às tantas. Ora, devia andar por lá… em reuniões com os seus camaradas. Ainda me lembro como se fosse hoje. Até deixou crescer o cabelo e a barba.
    Não se calava, quando se punha a botar discurso. Ele era as manifestações, colar cartazes, informar os trabalhadores dos seus deveres e direitos. Enfim…
    As rei.. rei… esta palavra é difícil, menino Jorge mas eu sou capaz de dizer. Reivindicações,hem? Salários mais justos e melhores condições de vida. Não era assim?
    Então, e as canções? O que eu gostava de cantar. Muito gostava
    eu de cantar. E tinha uma voz de rouxinol.
    O menino lembra-se desta? “Uma gaivota voava, voava, asas de vento, coração de mar.
    Como ela, somos livres, somos livres de voar…”
    Está bem, já chega. Já sei.
    Então e o que o menino nos contava? Ai, minha nossa Senhora…Ai, minha nossa Senhora…
    A formação dos sindicatos e os partidos. Tantos! Tantos! Tantos!
    E eu habituada à ideia de um só. Jesus, credo, abrenúncio….!
    Aprendermos a ser livres.
    Lembra-se, foi nesse tempo que conheceu a menina Isabel. Que
    amor tão bonito! Até dava gosto ver.
    Estou mesmo uma velhota de coração mole…
    Agora, por tudo e por nada, entram-me ciscos nos olhos. Tenho que ir ao Sr. Dr….
    Bem, tenho mais que fazer. Isto é que foi uma conversa, hem?
    O menino Jorge fica nas suas escrituras e eu vou tratar da vidinha, ai, isso é que vou!”
    E lá foi Isaurinda benzendo-se
    com a mão direita e, com a outra, a descoberto, um desvelo de bradar aos céus…

    Jorge.
    Excepcional crónica.
    Desculpa. A Isaurinda… Conhece-la tão bem. Sabes como ela é.
    Eu também gostei muito de a conhecer.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. A cada crónica minha respondes com um texto belíssimo. Uma forma bela de dizer. Só me resta pedir às pessoas que te leiam. Abraço imenso

  6. Eulália Martins

    Revejo muito do que dizes. Foi há tanto tempo, foi ontem, foi há dez mil anos.
    Contas como tu sabes das emoções, da inquietação e da esperança. Andei para trás mais de quarenta anos. Um instante.
    E o amor, o amor
    Abraço de coração
    😘❤️

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Em. Foi tanto e tão bom. Mesmo nas noites de angústia vivíamos o gozo de ver as coisas a mudar. Ficou muito por fazer. Vamos reinventar os cravos. Grande abraço.

  7. António Feliciano Pereira

    Memórias de um passado recente!
    O princípio da Liberdade e o espreitar de uma oportunidade que não dorme!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. A Liberdade é um bem essencial sempre em construção. Temos de nos bater por ela até ao fim. Uma luta importante. Abraço enorme

  8. Isabel Soares

    Uma crónica de memórias autobiográficas. Em dois tempos,que se cruzam. O momento da liberdade colectiva que germinava tacteante,infantil e enexperiente e a liberdade individual onde comportamentos subjectivos ,antes interditos,,se manifestavam em público. Uma época de mudanças radicais socioculturais e políticas em que o grito maior desvelava o sentimento de liberdade ecpresso simbolicamente pelo cravo vermelho.
    As alterações foram drásticas e marcantes afirmando uma nova realidadde política e possibilidades individuais antes proiibidas. Por fim,alcançou-se,depois de tantas lutas ,na clandestinidade e de condutas vanguardistas (inscritas vissceralmente,em cada um que viveu esses tempos) a liberdade. É necessário não esquecer. Recordar sempre.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sim foi uma multiplicidade de mudanças. A vida a andar a uma velocidade inexplicável. Aprender com os erros. O riso e o choro. Um tempo intenso. Abraço enorme.

  9. Maria cristina Belchior Ferreira

    Tão bonito. Abraço enorme.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sempre um prazer imenso ter aqui a tua presença. Abraço imenso

  10. José Luís Outono

    Um grito pleno pela LIBERDADE justa e livre de um viver democrático.
    Um apelo constante nos momentos do presente e de um futuro que poderá não ser sincero.
    O eco de uma rua citadina, onde o azul do amor vestiu-se com a cor dos cravos e brindou num beijo ansiado a vivência numa casa a dois
    O sentir pleno do escrever nas interrogações de cada momento, com mundos constantes de exclamações e interrogações em gritos preocupantes.
    Amigo … gosto tanto de te ler!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Tão belo o teu comentário. Foi um tempo de muitas novas belezas. De muitos caminhos encantados. Uma maravilja eztares por aqui. Abraço enorme.

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