Crónica de Jorge C Ferreira | No reino

Jorge C Ferreira

No reino
por Jorge C Ferreira

 

Foram abraços e beijos através das máscaras e ultrapassando receios. Uma outra vida numa outra terra. Os abraços de corpos apertados. As frases entrecortadas. Uma conversa sempre inacabada. Os olhos húmidos de alegria. O mar a gastar-se na areia. Bênçãos enviadas por santas afogadas em alto mar. Santas proas de barcos. Santas pintadas em madeira antiga.

A rua, a minha outra rua, já não tem os vasos de verde berrante com as árvores redondas e pequenas. Agora erguem-se no seu lugar palmeiras que vão crescer e trazer sombra. Os pássaros continuaram a visitar-nos na varanda. Alguns, mais audazes, entram em casa. As migalhas das galegas a encherem-lhes o papo. Lindos os nossos pássaros.

A praia, que não frequento, com divisões por causa da pandemia. Não havia o tudo ao monte apesar de ser Agosto. Um espaço guardado para quem quer caminhar à beira-mar. Tanta gente debaixo dos chapéus de sol. Há também quem trabalhe para o bronze. Os cremes e os óleos. A pele a aquecer e a tisnar. O corpo a gastar-se. As mamas escolhidas por cardápio.

desaguo

Jantar no jardim da esplanada. A vegetação cada vez mais luxuriante. O lugar mais fresco da noite. Dessas noites muito quentes. A areia do deserto é o tecto que nos cobre. A pele húmida, suada. Borrifadores precisam-se. Os carros limpam a praia. As praias fecham a determinadas horas. O recolher à uma da manhã. O silêncio instala-se. Muita gente nas varandas. Nem uma aragem sopra. As noites tropicais. Apesar de tudo, dormir.

Não forçar o acordar. Temos todo o tempo do mundo. Os dias são crescidos. Parte da noite é para passar a ver e ouvir o mar. O “Surface” encerrado numa gaveta que nunca foi aberta. Tudo o que escrevi foi no telemóvel. Novas aventuras. A escrita a parecer diferente. As letras a deslizarem e o texto a aparecer. Poucas palavras que estamos no verão. Publicar sem hora nem dia certo. Esperar pelas respostas. Nada disto é morte de homem. Um jogo entre quem escreve e quem lê.

A partir de determinada altura o tempo começa a acelerar. Parece que algo estranho o espicaçou. Já se começa a pensar em fazer as malas. Eu, que só levei uma mala de cabine para um mês, estou à vontade. Cada vez viajo com menos coisas. Não compro nada. Sinto-me leve e liberto. O tablet continua por abrir. Os pequenos textos crescem no telemóvel. O telefone não se queixa. Tudo tão prático. Tudo tão simples. Tudo com a noite sem estrelas. O deserto a invadir-nos. O Mediterrâneo a fazer-se ouvir. Onda após onda. Não há nada que substitua isto.

O mês de férias está a chegar ao fim. A aventura de mudar de lugar durante a pandemia, de voar, está prestes a ser concluída. Queremos viver para contar este tempo. Um tempo que nunca pensámos viver. Sabemos que as despedidas vão ser difíceis. Vão-se verter lágrimas. Vamos fazer promessas juradas. Sabemos que nem todas vão ser cumpridas. Este é um tempo em que o futuro é uma incerteza. Iremos voar de novo. Outra experiência que implica risco. Esperamos chegar.

Chegámos e temos sempre quem nos espere. Novos abraços. Novas alegrias. A aventura conseguida. A partir daqui a estória será outra. Iremos continuar na incerteza mas no lugar a que chamamos nosso.

«Vocês se não fossem morriam. Logo um mês. Já têm idade para ter juízo.»

Fala de Isaurinda.

«Tínhamos que sair daqui. Estávamos a sentir-nos presos. Os cuidados que tomámos foram os mesmos.»

Respondo.

«Está bem, está. Manias. Coisas desnecessárias.»

De novo Isaurinda e vai. A mão fechada e zangada.

Jorge C Ferreira Agosto/2021(311)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | No reino”

  1. Manuela Moniz.pico@gmail.com

    Que texto cheio de ternura, Jorge! Sempre, o afecto a transbordar. É assim o amor simples e sincero entre amigos. Celebrar a vida com amigos, resgatar e recordar momentos felizes passados juntos, rir e emocionar… São momentos inesquecíveis.
    Admiro-te a coragem e fico feliz por ti, ao ver-te determinado cauteloso a recuperar o tempo perdido.
    Beijos, amigo querido.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Correr o risco. Viver a vida com os que gostasmos e nos gostam. Sentir a felicidade em instantes únicos. Tanto tempo depois. Beijinhos minha Amiga.

  2. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Caro Jorge, no seu Reino a vida recomeça, provavelmente com projetos sem data marcada.
    No início haverá alguma hesitação antes de pôr ordem na vontade imediata!
    Mãos à obra sem tibiezas!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Sim, é outra maneira de viver, de pensar de falar. Os afectos são mais intensos. O calor faz suar os corpos. É um outro tempo. Abraço

  3. Isabel Campos

    O teu dizer dos abraços em terras do Reino é sempre especial.
    Os afetos que te movem, que te inspiram neste tempo de tanto, de cautelas também.
    Beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Porque são diferentes. Esoecial é viver, abraçar e ser abraçados. Claro qur há cautelas infelizmente.
      Beijinho

  4. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    Meu querido amigo e poeta dos dias todos.
    Gastaram-se-me as palavras. Depois do que li sobre as tuas férias, ficou-me a saudade de um sol que me gratine a pele, de uma esplanada com o som do mar a ofuscar o meu olhar, de noites barrocas, quentes e longas bafejadas pelo pestanejar das estrelas.
    De abraços à chegada e na despedida.
    Dessa leveza do nada escrever e do desapego das compras inúteis e supérfluas.
    Esta descrição foi um convite. Irrecusável.
    Vou. Sem pesadas bagagens. Sem contar os minutos. Sem me perder em conversas da treta. Sem comentários.
    Está tudo na tua esmerada, cuidada e sentida crónica.
    Até para a semana.
    É que se me gastaram as palavras, meu amigo querido.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Sempre os teus belos comentários. As tuas palavras únicas. Sim, vamos viajar com pouca coisa. Beijinhos

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que bonita Crónica ! Tão agradável falar de férias, no “Reino”. Lugar que bem conhece e gosta.
    Mesmo de máscara, foi bom beijar e abraçar os amigos. Visitar lugares e descansar, mesmo assim ainda recebemos alguns belíssimos textos seus, que agradeço. Eram sempre bem-vindos.
    Jantar no jardim da esplanada … se é um jardim que já mostrou algumas vezes, é maravilhoso direi, paradisíaco. As férias são sempre um tempo merecido e necessárias, mas como tudo na vida, têm um fim.
    Regressar ao conforto da nossa casa é bom. O nosso canto espera-nos.
    Por aqui também muita gente, esperava o seu regresso.
    A esperança sempre vive em nós.
    As palmeiras, para o ano, já devem estar mais altas e ficaram á sua espera.
    Sempre me repito, mas é um gosto ler a sua escrita. Este “Reino” está demais, querido escritor.
    Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Tão belo o seu comentário. Sabe tão bem ler estas suas palavras. O Reino é outra vida. Outra maneira de viver. Abraço enorme

  6. Regina Conde

    No Reino sempre te sentiste cheio de vida ou várias vidas. Apesar das máscaras, dos abraços receosos, as vontades estavam patentes em cada areia vinda do deserto. Fiquei muito feliz quanto te soube no Reino. Quero saber que os meus Amigos de verdade se abracem e se beijem com os olhos brilhantes. As minhas férias estão adiadas, no entanto, tal como tu disseste à Isaurinda, tenho que sair daqui. Belíssimo texto de afectos. Abraço grande Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Lindo comentário. És uma Pessoa generosa. Viver outra vida num tempo difícil. Arriscar. Usufruir. Abraço enorme

  7. Isabel Torres

    Uma crónica para reflectir os tempos actuais. Serão tempos? O tempo de férias?Que férias?Se os meus comportamentos podem conduzir à morte de outrém(?). Se tenho de ficar e cuidar de quem ficou? Até por estar doente. Aonde estão estes “heróis “esquecidos? Não foram, não voltam,continuam. E continuarão até… Arrastando toda a família?!)

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sim o momento é complicado. Compreendo tudo isso. Eu felizmente tive hipótese e arrisquei. Senti uma necessidade imensa de viver 1 mês diferente. Correu quase tudo bem. Abraço

      1. Isabel Torres

        Compreendo. É necessário um tempo de férias para uma certa higiene mental. Estamos sedentos disso.Ainda bem que correu sem problemas.

        1. Jorge C Ferreira

          Obrigado Isabel. Abraço.

  8. Eulália Pereira Coutinho

    Que bela crónica, meu amigo.
    Senti-me por momentos a olhar o mediterrâneo, a saborear a noite na esplanada, com amigos.
    As caminhadas no passeio junto á praia. Que saudades.
    Tudo parece tão distante agora.
    As máscaras passaram a fazer parte da nossa vida. Nada volta a ser igual, para quem a saúde torna tudo mais complicado.
    Temos que continuar a lutar.
    Obrigada pelos seus textos diários. Obrigada por esta crónica. Obrigada pelas viagens que faço através da sua escrita.
    Bom regresso.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Sim é tudo diferente. Mjdar de País e mudar de vida. Aoesar de todas as regras a cumprir. Os afectos são diferentes. Foi um risco para sentir diferente.
      Abraço grande

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