Crónica de Jorge C Ferreira | A Peste

Jorge C Ferreira

A Peste
por Jorge C Ferreira

 

As horas mortas. As horas da morte. Os últimos suspiros. O fim que não cansa. Tanta gente a pensar nisto. Tanta gente que já não pensa, espera. Esperar pelo inesperado, pelo sem sentido. Esperar que o sofrimento não seja muito. Uma etiqueta colocada com um cordel no dedo grande do pé direito.

A doença sem fim. A passagem de corpo para corpo. Os corpos unidos. As mãos esfregadas com álcool até ao osso. Os ossos sem pele. A pele sem osso. A peste. A malvada vestida de negro. Uma espada que já não faz parte da história. Um elmo. As ossadas. Nem um pingo de sangue. Apenas choros e cânticos. Um coro de carpideiras mascaradas.

As velas acesas. As flores e o incenso a regenerar os cheiros. Uma cruz sem Cristo. Os dois ladrões à mesa da desgraça. Um caixão fechado. Os tules que não se vêem. Os que vêm espreitar. As voluntárias que vêm rezar. Uma estranha freguesia num sítio proibido. Uma casa cansada.

desaguo

Sucedem-se as vagas. Vaga a vaga vamos tentando saltar sem sermos atropelados. São vagas de lugares distantes que já correram muito mar, que já conhecem bastantes peixes e fizeram as delícias de muitos surfistas.

Há um barco antigo que conta as histórias de antigas doenças. Risco a risco podem-se contar o número de mortos. No porão há tonéis de um vinho que nunca foi aberto, que nunca chegou a lado nenhum. Um vinho que não passou o equador.

Equador que nós não encontramos nesta trama que nos envolve. Há já quem não saiba em que dia está. A venda de comprimidos que atenuam as doenças mentais disparou. Há quem tome comprimidos para acordar e comprimidos para dormir. Nunca se gastou tanta caixa para ordenar as pílulas a tomar, quando e a que horas. Tomam-se por atacado. Não por sair mais barato, mas por uma questão irracional. Água para cima e já está.

Os distúrbios acumulam-se, compram-se outros comprimidos e assim sucessivamente até ao nunca mais. Perdem-se a conta das doenças que se vão inventando. Tudo para não se ser apanhado pela tal vaga.

Multiplicam-se as vacinas. Vacinas que, apesar de tudo, dizem que faltam. Vacinas sobre vacinas. Uma picada num braço e submarino ao fundo. Uma dose, duas doses, três doses, não sei já quantas doses. As que forem necessárias digo eu.

Os mais novos estão fartos. Vão beber para a rua. Desafiar as normas. Um perigo, para além de alguns deles estarem nas UCI’s’, terem Pais e Avós, pessoas mais sujeitas a casos graves. O tempo em que já andamos nisto também não ajuda. O abre e fecha. As curvas dos gráficos. Uma montanha-russa sem looping.

Por cá continuam os que sobreviveram. Sabemos quantos morreram da peste. Não sabemos quantos morreram com outras patologias e que poderiam ter sobrevivido. Uma contabilidade que ninguém quer fazer. Quantas pessoas choram por isso? Quanta raiva enterrada?

Os negacionistas. Os que aparecem sempre porque sim. Os que gostam de ser ouvidos. Os aguadeiros dos que nos querem encarcerar. A vida não está fácil. As vagas não param! Até quando?

Cuidem-se muito.

«Isto está muito triste. Para triste basta a vida.»

Fala de Isaurinda.

«Tentei romancear um pouco o que estamos a viver. Só isso.»

Respondo.

«Não tinhas mais nada sobre que escrever? Olha que tu!»

De novo Isaurinda e vai, na mão fechada alguma zanga.

Jorge C Ferreira Julho/2021(310)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A Peste”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Maria. Não sabemos de nada. Tudo está suspenso. Todos estamos em suspenso. Que vida irenos ter. Teremos? Abraço imenso

  2. Manuela Moniz

    Tão dura e tão bem descrita a vida que estamos a viver, Jorge. É tao grande a instabilidade do presente e a incerteza do futuro, depois desta pandemia. A nossa vida vai mudar muito daqui para a frente e temos de aceitar essa nova e triste realidade. Oxalá esteja eu enganada.
    Haja esperança! Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Nada vai ficar igual, penso eu. Coragem, muita coragem. Estás no paraíso. Cuida-te e defende a tua terra. Abraço grande

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente. A vida real descrita com a mestria a que nos habituou.
    A vida voltada do avesso. A peste.
    As vagas que aparecem, quando a tempestade parece estar terminada. As vacinas que parecem miraculosas. De repente surgem dúvidas.
    Tantos ficam pelo caminho. Tanto cansaço. O tempo vai voando e a peste continua.
    Os dias são iguais. As estações do ano mudaram de cor. Não tarda o Verão chega ao fim. Os dias são tão longos e as semanas tão curtas.
    Nada vai ser igual, meu amigo. Esta peste vai deixar marcas. Ninguém fica de fora.
    Vamos ter força.
    Obrigada pela sua presença.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Coragem, minha Amiga, muita coragem. Sabemos que muita coisa vai ser diferente. Ou será tudo? Temos de resistir. Um enorme Abraço.

  4. Cecília Vicente

    Tal como eu, creio haver milhares, milhões de pessoas que pensam e repensam para que serviu, ou serve tudo isto, acreditando que o vírus do nada veio selecionar o quê? melhorar a humanidade se o pior do ser humano veio ao de cima (…) Dizem que houve e continua haver falha de comunicação, não quero acreditar que as regras de uso de máscara, higienização, gel, água, e sabão azul e branco mais o distanciamento não seja entendido por todos nós adultos e jovens… Beber e festejar o quê? será mais importante do que os avós, pais, tios, e, eles mesmos acreditarem minimamente num quiçá futuro mais credível? Será esta a nossa falha? deixamos de acreditar? A anne Frank, a adolescente que viveu em pleno a sua pré adolescência fechada, escondida durante dois anos num minúsculo compartimento onde tudo faltava, e, simplesmente escreveu, escreveu a sua vivência de medo não do vírus mas da ignorância e da supremacia da diferença da raça, da religião e da ciência, e é na ciência que continuamos cativos, vacinar, testar, e cuidarmo-nos para que nada nos afecte. A ciência é um estudo contínuo, tudo se sabe, tudo se aprende com o resumo final de que nada se sabe, é necessário continuar a investigar para melhorar e amenizar efeitos… Estou exausta, estou em banho maria para não levantar fervura, estou como estou, à espera de alguma coisa boa (…) . No final se o houver, haverá muito mais fortunas, mais milionários, afinal, é nas pandemias e nas guerras que crescem fortunas… Abraço meu amigo. Cuida-te!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Muita coisa vai mudar. Temos de Resistir, de saber resistir. Será que temos de natar a nossa vida? Vamos ganhar coragem. Muito importante o teu comentário. Abraço imenso

  5. Isabel Torres

    Bela crónica, como sempre. E um retrato exímio sobre a realidade actual, que nos consome. A “peste “. Tem sido um extermínio biológico. Um vírus traiçoeiro que encontra sempre forma de se instalar. Mais vulneráveis, agora menos vulneráveis. Já todos temos,na nossa história, alguém que morreu ou adoecceu gravemente da “peste”. E e sim. Houve pessoas que morreram de outras doenças por falta de assistência. Os serviços médicos estão sobrecarregados. Saturados. Os profissionais com excesso de trabalho. Exaustos. Mesmo quando os números baixam existe tudo o mais que se vai adiando. Ficando para trás. Humanamente tem sido impossível dar resposta a tudo. Tanto cansaço. Tanto. De todos. As pílulas entorpecem e ajudam a viver ou a continuar com o quase impossível. E a aceitar que,agora,viver ou morrer é uma questão de sorte.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Lúcido o seu comentário. O que nos espera? Como ficará a saúde mental das pessoas? Coisas tão importantes! Vamos resistir, minha Amiga. Abraço grande

  6. José Luís Outono

    ” A vida não está fácil. As vagas não param! Até quando?”
    Num remate, resumes os mares de interrogações, deste mundo a morrer em momentos continuados, e sem esperanças credíveis … hoje e amanhã.
    Estranho sentir, que desenvolves muito bem ( como sempre) neste artigo, que reli lentamente e pensei ser teu partidário desse olhar interrogativo sem esperança.
    Custa!
    Grato pela reflexão excelente destes dias onde uma alegria é incerta e a acontecer obriga-nos a enfrentar complexas equações de uma vida certa ou incerta continuadamente.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Tanta coisa que se entrelaça. O aquecimento global e os gritos da natureza. O consumismo desenfreado. Tantos erros. Tantas pandemias. Temos de ter coragem. Abraço forte

  7. Filomena Maria de Assis Esperança Costa Geraldes

    Que ninguém negue que ela chega. Vestida de negro? Ou alva como as nuvens? Que usa o canto das sereias. Se aproxima. E se apossa do corpo. Como se fizesse amor…
    Que ninguém desminta que o eco dos choros, as lamúrias do desgosto e as intempéries que se abatem sobre os cílios são o lado de lá da vida.
    A despedida. O cheiro a velas. As missas com oratória. O pesar. A última viagem. O derradeiro aceno.
    Que ninguém ouse dizer que a peste não veio para ficar. Está sentada. Impávida. Serena. De pedra e cal. A estátua moldada com martelo e escopro por um escultor desconhecido.
    Que ninguém seja capaz de duvidar que o medo anda por aí. Sem medo.
    Rebentando correntes. Não escolhendo quem nem como. Quando…
    É a peste, mestre. É a peste! Retrataste-a com a tua câmera. A preto e branco. Descreveste-a.
    Pormenor a pormenor. Entraste nesse cenário dantesco. Um quase inferno.És o contador de um tempo mórbido e extenuante. Depois de assinado o pacto entre os homens e um deus que se afadigou…
    É a peste, mestre. É a peste! E tu a denunciá-la.
    Ela sentada. Serena. De pedra e cal.
    É a peste!
    Mestre…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Sempre brilhantes os textos que aqui deixas. Este é um filme a preto e branco com uma fotografia maravilhosa. É tão bom estares neste espaço. Abraço enorme

  8. Maria Fernanda da Cunha Morais Aires Gonçalves

    Já estamos a viver na jangada de pedra ficcionada por Saramago.
    Já ouviste falar de “Code”? pois fica sabendo que, cada um de nós tem um. fiquei espantada quando me disseram que para ir a Porto Santo tinha que apresentar às entidades de Saúde, além do Certificado da Vacinação um papel com o meu Code. É verdade! É um desenho muito interessante que mais parece uma marca que se aplica aos animais quando são marcados. O nosso por enquanto não é na pele, é num papel.
    Mas que é estranho é!
    Isto não te faz lembrar nada? Eu ando ralada!
    Já vi tantos filmes! Eu sou uma Baby-boomer!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Sim muita coisa vai mudar. Até onde? Não sei. Temos de estar atentos. Mas temos de nos cuidar muito. Grato por estares aqui. Abraço grande

  9. Maria Luiza Caetano Caetano

    Uma peste que não pára. Muito bem descrita, como tão bem sabe.
    Muito bem observado, todo o seu relato. Mas assustador o resultado final. “Continuar a resistir.”
    Vamos suportando esta luta, queremos continuar a viver. Vamos continuar a ter os cuidados necessários e arranjar a cada dia, mais paciência.
    Muito obrigada, pela ajuda preciosa que todos os dias, nos dá. Com a sua escrita, um excelente apoio.
    Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Gostei muito do seu comentário. Sim, temos de resistir. Este tempo é tremendo. Tão grato. Abraço imenso

  10. Maria Pereira

    Todas as pandemias, são uma peste!
    Já não sei quantos sobrevivemos a esta…já todos morremos um pouco!
    Chorar quem?…não nos deixam saber quem choramos…enganos…mais um corpo…simplesmente, uma vítima da actual peste, tudo tem um tempo e lágrimas!
    Grata, Jorge C. Ferreira por tão boa divagação sobre coisas do nosso tempo!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Tem tanta razão. Todos já morremos um pouco. Quantos morreram de outras doenças em virtude da pandemia. Vamos ter coragem. Abraço grande

  11. Branca Maria Ruas

    Uma crónica em tempo de pandemia.
    Descreves bem o cansaço a que já todos estamos sujeitos.
    Até quando continuaremos com as nossas vidas suspensas?
    Não podemos perder a esperança.
    Somos os sobreviventes!

  12. Regina Conde

    Texto de tristeza, como sempre, corajosas palavras. Faço das palavras da Isaurinda as minhas. Abraço Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Sabes que há mais na vida para além da pandemia. Vou dizer o que dizes à Isaurinda. Coragem. Abraço imenso

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