Crónica de Alexandre Honrado – Sou anormal

Alkexandre Honrado

Sou anormal
Por Alexandre Honrado

 

Só quando os detentores dos lucros perceberem que, sem aqueles que não lucram mas que dão a lucrar, não lhes serve de nada produzir em massa, criar impérios, escravizar os mais frágeis; só quando o sistema entender que sem as peças da engrenagem não há engrenagem nem sistema, a pandemia verá novas prioridades, a produção de vacinas e outras milagreiras fórmulas de fazer os que produzem voltar aos seus postos de produção sem grandes interrogações, ainda vivos, mesmo moribundos, para satisfação de quem lucra com as suas vidas. Os excedentes como sempre serão descartados. Os lucros como sempre serão guardados. A repartição não existirá, como sempre, porque o sistema lucra – não reparte.

Não voltaremos, finda a pandemia e obviamente, à “normalidade”, por mais do que uma razão, todas muito evidentes. Em primeiro lugar, a normalidade não existe. É uma das muitas utopias criadas pelos mais imaginativos. Nada é normal efetivamente. Nem nos animais, nem nas plantas, nem no mundo inorgânico, nem na cultura ou na espiritualidade, nem na exceção dos afetos.

A anormalidade é a norma. A menos que considerem normal a obediência cega, a crença na mentira constante, a escravidão em todos os seus graus anormais de imposição, a violência com o próximo, a explicação para os vírus que misteriosa, silenciosa e invisivelmente nos atacam de vez em quando – e a história do mundo já tem uma lista longa de exemplos.

Estivemos em casa, prisioneiros por boa fé, por aceitação e passividade, por mesmo e por sermos crédulos. Saímos quando nos entreabriram a porta.

À nossa volta o mundo parece intocado. Há mais valas comuns, mais campas, mais morte? Nem por isso. Foi pior nos terramotos, nas guerras, até noutras pandemias.

O mundo verde não passou a nascer azul, nem o sol com a sua abrasadora presença deixou de ser a estrela criadora e ameaçadora de sempre. A água continua a constituir-nos, mais de 60 por cento de nós é pouco mais do que chuva, essa precipitação dos olhos da natureza que também não é diferente agora do que era antes disto tudo.

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À nossa volta mantêm-se as pedras, as ravinas, as falésias, as montanhas, o gelo ameaçado pelo aquecimento global, a poluição, a raiva, os assassinos. Tudo e todos se mantêm, só partiram os que morreram, todos de causas naturais, porque é natural neste período muita coisa que antes nem parecia ser possível.

Há mais miséria? Onde? No Iémen? No Portugal que ficou do Passos Coelho, emigrante, refugiado, humilhado, desempregado, desesperado, suicidário? Há mais pobreza? Onde? No Níger? Em Moçambique? Mais do que a que havia nos últimos anos? Alguém vai passar férias à Serra Leoa ou adia as suas, nas Caraíbas, até ver no que isto dá?

A comunicação e a economia, faces do que é global, dão a outra face perante a vergonha do que criam – ou estão na mesma, como estavam, antes das primeiras notícias de Whuan, antes do confinamento? E foi em Whan? Já há um relatório sobre os primeiros casos na Europa (agora o candidato a primeiro foco é a Holanda, que tanto grita para não ajudar o próximo), e outro sobre Espanha e mais um sobre Itália… ).

E que verdade nova podemos retirar dos novos tempos? Que somos inconscientes dos nossos limites? Que o sistema não aguenta mais de três meses sem nós, rebentando imediatamente pelas costuras tão frágeis do que alinhavou sem qualquer plano de futuro?

Que gastamos milhões com apresentadoras de TV e treinadores de futebol sem termos um centavo que pague a nossa existência miserável? E que valor damos à nossa criatividade, que numa lista de prioridades é sempre a que fica em último lugar de todos os magros apoios que preferem salvar bancos, companhias aéreas, amigos que especularam sem a menor sapiência e apostaram nas roletas mais obscenas? E será que queremos preservar alguma coisa, já que se olharmos para trás não há nenhuma área exemplar, nenhuma ideia a conservar, nenhum monumento que nos faça falta, nenhuma crença ou desconfiança que faça sentido para a criação de um ser melhor? Alguma coisa que seja, afinal, normal, substitutiva (não esquecer que a formação substitutiva consiste na substituição de um fenómeno inconsciente por outro que existe na consciência), digna? E de quem? E de quê?

Olha, o Cântico Negro!

“Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura!”

Creio que vou ler. Sou um anormal.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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