Crónica de Alexandre Honrado – O fim do mundo ou apenas um até já?

Alkexandre Honrado

Estamos em combate pela alteridade, essa ideia que consagra como a existência do “eu-individual” só é permitida mediante um contato com o outro.

Coisas que julgávamos perdidas, como a leitura, vêm provar a frase que diz que “ler conduz-nos à alteridade, seja à nossa própria ou à dos nossos amigos, presentes ou futuros”.

E lemos, por medo. Lemos tudo. Frases feitas e batidas, artigos de opinião, o e-mail da tia e a literatura farmacêutica da avó.

Agora é o tempo de ler. É tempo da alteridade. De percebermos que precisamos desesperadamente dos outros, até imobilizados – para sermos nós.

É uma opção cultural, essa. E sendo-o é obviamente política.

Forjamos na caldeira a escaldar do nosso medo a vontade de resistir.

Perdemos um bocado o rumo, desorientamo-nos, damos pontapés aos móveis, cabeçadas nas esquinas, mesmo que o façamos apenas dentro das nossas cabeças.

A perigosa descida a pique é psicológica. E o conseguirmos sobreviver ao vírus social que se espalha como rastilho seco e aceso, é o desafio.

O racismo sai à rua e agora todos os culpados são chineses. Os testes, as máscaras, os equipamentos que vêm da China são fatais, estão estragados, são chineses. Pior. A notícia falsa de que os habitantes de Wuhan voltaram aos mercados ao ar livre – ilustradas na net com fotos de mercados da Indochina, por exemplo – ou que – a China esconde casos assintomáticos e que até um improvável jornal de Pequim terá afirmado isso mesmo, correm e entram nas nossas vidas. É mais fácil acreditar nas luzes que iluminam os recantos da nossa cobardia, que num sol qualquer que nos retempere e aqueça com sentido.

A loucura americana e brasileira, com dirigentes assassinos no poder, é coberta pelo contra-ataque anticomunista que desvia as atenções para a China, sempre para a China, que, nunca isenta de responsabilidades, agora é a culpada de todas as desgraças.

Li a prosa racista de uma professora universitária, já idosa, que espalha a infeção de ideias não provadas.

Faz parte da minha alteridade. Preciso desesperadamente dos outros, até para não os querer por perto.

É claro que a crise ainda nem começou a cair-nos em cima. Sofremos muito com as tonterias capitalistas e neoliberais dos últimos anos, com o poder nas mãos e a atirar dinheiro para dentro dos bolsos corruptos dos amigos, sugando os bancos e obrigando outras formações de outras famílias ideológicas a pagarem dívidas que não contraíram.

É esse modelo capitalista – seja o caricato modelo chinês que criou os novos milionários, seja o terrível e assustador modelo americano, com os seus polícias do mundo que inventaram uma fórmula imperialista com capa de super-homem democrata – que conhecemos nos últimos anos, que faliu com esta crise. Que mostrou as suas contradições e fragilidades. Imaginem se isto era com certo presidente que já tivemos e certo primeiro-ministro que, felizmente, já passou, levando consigo aquela sua trupe coligada.

A pandemia covid-19 criou uma disrupção que não parece abrir exceções em nenhum país do mundo. Trump diz que os seus opositores querem manter as pessoas em casa para ele perder as eleições. Bolsonaro baba-se em público, com os seus problemas mentais cada vez mais relevantes, apoiado por “religiosos” que dizem em tempo de antena que o fundamental é continuar a pagar o dízimo e apoiar com o seu dinheiro a casa das ideias em que acredita. O primeiro-ministro inglês sofre o coronavírus e está em casa, à espera que na Europa, de onde retirou vergonhosamente o seu país, chegue uma vacina.

As crises vencem-se com ideias. Ideias que conduzem a ações – e algumas são as mais certas.

Não sou pessimista, embora escreva num tom que possa parecê-lo. Só me assusto com imbecis a passear ao sol em Matosinhos ou a atravessar a ponte 25 de abril, para morrer do outro lado do rio. Preciso, no entanto, de contatar com o outro, para a minha própria sobrevivência. Nem que seja a um metro de distância, com luvas, fato a rigor, máscara.

Alteridade. Combate. E esperança num mundo novo, que a natureza nos está a apontar, basta sentirmos.

 

Alexandre Honrado

 

 


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