Folhetim | Muitas e desvairadas gentes (5º. Episódio)

CAPA Licinia

FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

MUITAS E DESVAIRADAS GENTES (5º. Episódio)

– Que Deus nos defenda! – dizia, enquanto beijava o Bentinho Doutor Sousa Martins que sempre trazia pendurado no fio de prata, juntamente com o crucifixo que a prima Maria do Sacramento lhe tinha trazido da excursão à Terra Santa, promovida pelo senhor Padre Francisco, um santo homem que, por um preço insignificante, lhes servira de guia e ainda por cima tinha ajudado a transportar ao hospital a Maria das Poças que em má hora torcera um artelho que começara a inchar e a arroxear, mas que, com a graça de Deus, não foi mais nada de cuidado. Apenas teve de ser levada durante os dias que faltavam para o fim da viagem, em cadeirinhas improvisadas pelos braços fortes e peludos dos irmãos Videirinha. Coitados, não admira que, num desabafo, quando enfim deixaram em casa a Maria das Poças, um deles tivesse deixado escapar:

– E agora veja lá se começa a comer menos, que Vossemecê pesa mais que a porca do Manel da Eira, com sua licença!

 

***

 

O prédio, quase em frente ao CAFUNÉ, era velhote mas simpático. Três pisos apenas, uma das caves com janelinhas a roçar o passeio, por via da inclinação da Calçada, de tal forma que a Dona Rosa, com as artroses a fazerem ranger as cervicais, impedida de esticar o pescoço, só via da cintura para baixo quem passava junto das janelas. Não era assim tão mau, porquanto dava para estimular a imaginação. Quantas vezes perguntava para com os seus botões:

– Como será este dos “coses” para cima? Se for do jeito do que é para baixo, não seria a Rosa a deitá-lo no lixo.

Era uma construção que mantinha uma certa dignidade, a apresentar-se orgulhosa no gaveto ensolarado da Calçada, apesar das rachas no reboco que se adivinhava ter sido pintado de ocre claro e das janelas de alumínio que se iam atrevendo a substituir velhos caixilhos de madeira apodrecida pelas muitas invernias e pela falta de manutenção. Rendas agora baixíssimas, como se lamentava o Senhorio, que não davam para mandar pregar um prego. Quem não estivesse bem que se mudasse! Pudera! Um forreta que morava em bela casa própria em Campo de Ourique, com portas pesadíssimas de ferro trabalhado, com elevador e tudo.

 

(continua)

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