Crónica de Alexandre Honrado – A escassez que nos esvazia

CapaAHonrado

Falava, por sugestão de outros, sob o tema escassez quando me dei conta de que, por escassez óbvia, havia na plateia quem desconhecesse o termo.

Creio que este fenómeno se tornou recorrente: falamos de coisas que julgamos óbvias, ou interessantes, ou mesmo necessárias – e já não o são, porque as escassas plateias que nos ouvem se afastaram do exercício do reconhecimento, se alhearam a dado passo, e só se mobilizam para uma discussão fortuita de futebóis, que, esses também, se tornaram escassos, no interesse, no desportivismo que traíram, na festa coletiva que proporcionavam.

Só há cultura com conhecimento. E só há conhecimento com reconhecimento: sem aprender não se aplica. E sim, bem sei, não há cultura boa – nem má. Há aquisição de coisas que podem estar com conforto ao nosso serviço. Ou afastarem-nos uns dos outros, irremediavelmente.

Falávamos de escassez, é certo. E em múltiplos exemplos. Da água que já falta em muitos lugares aos afetos que, não resolvendo tudo, dão uma ajuda em certas horas.

Mas de afetos andamos cheios. A hierarquia resolve com abraços o que os da sua cor nunca nos trouxeram como conforto, e até descobre nos que nos traíram recentemente o exemplo da recuperação que outros, depois deles, empreendem.

Assim, o abraço torna-se garrote. Garrote – que muitos não sabem o que é, porque há formas bem mais modernas de nos tirar a vida, estrangular, impedir o ar que respiramos.

Falávamos de escassez, aparentemente uma palavra erudita para alguns.  E se formos a ver bem, é natural: só um erudito pode encher-se e colmatar a escassez de si, enraizado na base sólida de coisas da erudição aquilo que o torna erudito.

Isso, no entanto, levou-nos ao pânico: a par com escassez e garrote, lá vieram coisas muito mais sinuosas e sinistras como as palavras erudito, colmatar, erudição.

A verdade é que esta escassez vocabular nada tem a ver com a ortográfica.    Fernando Pessoa não era escasso nem usava acordos ortográficos como os delapidados em 1989. Camões não escrevia como ele; nem Sophia de Mello Breyner como os outros dois. E não eram escassos na sua erudição. E enchiam-nos dos afetos mais prementes. Até se enchiam – como Teixeira de Pascoais – daquela inquietação tão portuguesa a que (praticamente só nós) chamamos saudade – coisa que nos torna culturalmente uma amálgama de povos escassos que, apenas juntos, fazem algum sentido,  e se formos a ver bem, só de quando em vez em momentos excecionais.

 

 

Alexandre Honrado

Historiador

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