Folhetim | Benvinda – Uma História de Emigração (13º. Episódio)

CAPA Licinia

FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

 

FOLHETIM – A História de Benvinda (13º. Episódio)

Onde eu já vou, o que eu lhe fui contar, coisas minhas iguais às de tanta gente, quando o que eu queria dizer, e quase me esquecia, é que a casa ficou para nós e muito penámos para fazer dela uma casa com condições, há lá que chegue a um tecto que seja nosso, para isso a gente faz toda a espécie de sacrifícios.

Aproximava-se o mês de Agosto e tudo era reboliço na pequena casa de porteira no bairro fino da cidade-maravilha. Benvinda preparava sacos, saquinhos que, com alguma melhoria de vida, se foram transformando em malas, maletas. À conta de Berta era uma mala cheia de livros, a mãe a queixar-se do peso, do exagero, da mania das leituras. Uns “souvenirs” para a família e vizinhos, tudo coisas sem valor, mas mesmo assim só em miniaturas da Torre era uma mão cheia de francos. Na véspera da partida, Benvinda passava o dia a cozinhar e encher tachos e tachinhos, numa profusão de cheiros e gostos portugueses, com muito tempero de saudades. Basílio vestia-se a rigor para impressionar os atrasados lá da terra que nunca tinham visto uns calções às flores, uma camisola com uma manga de cada cor. Benvinda e Bento ficavam irritados pela falta de entusiasmo das crias, ela apática, com a cabeça na Lua, ele com aquele ar enjoado de quem acha que ao pé dele são todos uma cambada de parvos. A Bento cabia a tarefa maior de “alocar” a viatura e ai de quem a ela se referisse como “grosse bagnole petit zizi”.

Pendurado no retrovisor, lá estava um terço comprado no ano anterior em Fátima, onde foram agradecer à Virgem por o Basílio não ter ficado mais tempo naquele lugar sem nome. Dessa vez o primo Benjamim, um degenerado, ateu e, pior ainda, comunista, que já tinha estado em Peniche, na pensão Salazar, como ele dizia, dessa vez em que se atreveu a dizer, com ar de escárnio, “não se esqueçam de agradecer também à Virgem por ter feito dele um gandulo”, dessa vez foi preciso o mulherio apartá-los antes de acontecer alguma desgraça. No vidro da frente, do lado do pendura, um autocolante do emblema do Benfica e na antena uma bandeirinha de Portugal. Amuletos para quem, expulso pela pobreza dos seus lugares, obrigado a sobreviver em lugar alheio e hostil, invoca retornos impossíveis. Ao certo, nem os lugares a que irá voltar serão os mesmos nem alguém a eles regressará inteiro de corpo e de inocência.

 

(continua)

 

 

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