De repente apetece-me confessar que todos os textos, mesmo aqueles onde mais ficcionamos, são textos escritos na primeira pessoa, textos no singular, mesmo os menos singulares. Este é portanto um texto desses. Um texto na primeira pessoa e magoado, mal refeito das emoções, uma tatuagem mal cicatrizada, por outras palavras: um texto à flor da pele. Estive duas vezes ao pé de George Steiner. Numa, com timidez, apertei-lhe a mão, julguei-me eleito, um privilegiado. Foram encontros ocasionais, Steiner falava publicamente, e eu estava numa das filas sombrias mas não frias…
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Crónica de Jorge C Ferreira | “Uma Parede de Vidro”
“Uma Parede de Vidro” As lágrimas derramadas numa noite de solidão. Um vidro de onde se parte para o Mundo. O Mar a derrubar as barreiras que lhe querem impor. Um barco que parte para destino incerto. Flores raras que cantam serenas baladas. Uma montanha escrita a negro num quadro branco. Uma nuvem mais agreste. O pronúncio do temporal. Corri estrada acima em busca do pingo maior de chuva. Nem uma aberta. A estrada é uma corrente de água contra quem luto. As galochas e o fato de oleado a…
Ler maisCrónica de Alexandre Honrado | Como me afogo nestes dias secos
Um copo de água e eu. Tento fixar os olhos na aparente, quase chocante transparência do líquido; são os meus olhos que se turvam e perdem. Vejo à minha beira uma barcaça cheia de foragidos. Chamam-lhe refugiados, chamo-lhe gente perdida no labirinto dos que lhes impõem o rumo. “A Polícia Marítima detetou na madrugada desta quarta-feira uma embarcação com 11 imigrantes ilegais a bordo junto a Olhão, três dos quais tiveram de ser transportados ao Hospital de Faro para despistar problema de saúde“. Bebo um gole de água, para disfarçar.…
Ler maisFolhetim por Licínia Quitério | Dona Clotilde – (2º. Episódio)
Folhetim por Licínia Quitério “Dona Clotilde” – (2º. Episódio) Retirava os selos que chegavam das mais distantes paragens para engrossarem a colecção do patrão que por eles esperava, com impaciência. “Não demorra nada, senhorr doutorr”. Carregava nos “erres”, mas fazia questão de esclarecer não ter nada a ver com Setúbal. O Padrinho, senhor finíssimo e rico, que a criara com esmeros de bordados, piano e francês, falava assim. Não lhe herdara os bens (que Deus tivesse a sua alma em descanso), mas os “erres” e as boas maneiras. Ao fim…
Ler maisCrónica de Jorge C Ferreira | Uma tarde na Casa dos Ventos
Crónica de Jorge C Ferreira Uma tarde na Casa dos Ventos Uma casa dos ventos numa tarde ventosa. Três pessoas que gostam de escrever, de ler e que amam os livros. Uma casa de cantos e recantos. Uma casa para sonhar e brincar às casas. Há vida, livros e um gato que se passeia por entre nós. Um gato chamado O’Neill, tinha de ser. Um gato com nome de Poeta. A poesia em cada parede. Esta casa nova de tão antiga. O motivo foi ir buscar exemplares de um livro…
Ler maisCrónica de Alice Vieira | Sonhar dá muito trabalho
Há uns bons anos (mas não muitos, apesar de tudo…) uma escola de Timor recebeu uma prenda: um quadro preto. Um quadro preto, banalíssimo, daqueles para os quais, nesta era da tecnologia acelerada, os alunos olham quase com desdém. E muitos haverá que nem sequer sabem para que é que aquilo serve. Uma prenda que certamente ninguém se lembraria de oferecer hoje a nenhuma escola do nosso país. Se o fizesse, cairia o carmo e a trindade, seria decerto motivo de primeira página dos jornais, abriria telejornais, os pais protestariam…
Ler maisCrónica de Alexandre Honrado – Não nos doí o que já esquecemos
De vez em quando, por falta de tema, um órgão de comunicação social traz das profundezas dos tempos os moais, ou naokis, essas enormes estatuetas de pedra que ainda hoje se erguem na ilha de Páscoa, e, a propósito, fala-nos daqueles que as terão feito e que, com algum mistério para nós, desapareceram deixando-as apenas como prova da sua existência. Se procurarmos na História, esse desaparecimento não é exceção. E passo a enumerar alguns dos muitos exemplos possíveis. O debate mais recente retoma a discussão sobre o desaparecimento do homem…
Ler maisCrónica de Jorge C Ferreira | As reformas de miséria
Crónica de Jorge C Ferreira As reformas de miséria Trabalhar uma vida e receber uma reforma que não dá para sobreviver. Prometer um aumento de meia dúzia de Euros por mês a estas pessoas é uma ofensa. Somos um povo calmo e pouco exigente. Muitos não têm dinheiro para ir mais longe que o jardim ao pé de casa. Os idosos de agora passaram um tempo de privações, de falta de liberdade, foram formatados para obedecer. Quando chegou a Liberdade, muitos já eram Pais. Alguns, os que resistiram e souberam…
Ler maisCrónica de Alexandre Honrado – Levarei os meus olhos cheios do que não vi
Não tenho saudades do passado. A minha terra, quando eu era pequeno, era um local cinzento e cheio de cicatrizes, assim uma espécie de sarjeta – dessas onde aquele deputado isolado do parlamento, a quem eu chamo o Menino Mussolini, gostava de ver de volta. Não tenho saudades da ordem na ponta das espingardas e dos escândalos atrás das portas. Prefiro armas à vista, de preferência entregues para abate, e escândalos que possam ser julgados pelo Estado de direito, à vista e de preferência entregues à justiça, para abate. Não…
Ler maisFolhetim por Licínia Quitério | Dona Clotilde (1º. Episódio)
Folhetim por Licínia Quitério “Dona Clotilde” (1º. Episódio) Dona Clotilde era madurona. O cabelo pintado de negro, avolumado por muita laca, com transparências indiscretas. Peladas, não senhor, coisas dos nervos que apanhara. Os lábios, pintados de escarlate, ganhavam a forma de coração em caixa de bombons. Passada que fora a beleza consentida pela frescura dos anos, ficara-lhe o ar de boneca de papelão abandonada em sótão, um pouco amachucada, mas ainda colorida e risonha. Mamalhuda, de perninha fina, sempre encavalitada em saltos altos, inclinava-se para a frente ao andar, lembrando…
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