Folhetim por Licínia Quitério | Dona Clotilde – (2º. Episódio)

Licínia Quitério

Folhetim por Licínia Quitério 

“Dona Clotilde” – (2º. Episódio)

Retirava os selos que chegavam das mais distantes paragens para engrossarem a colecção do patrão que por eles esperava, com impaciência. “Não demorra nada, senhorr doutorr”. Carregava nos “erres”, mas fazia questão de esclarecer não ter nada a ver com Setúbal. O Padrinho, senhor finíssimo e rico, que a criara com esmeros de bordados, piano e francês, falava assim. Não lhe herdara os bens (que Deus tivesse a sua alma em descanso), mas os “erres” e as boas maneiras.

Ao fim do dia, lavava escrupulosamente, com um papel embebido em álcool, o tampo da secretária e arrumava as ferramentas do ofício, em alinhamento de exército pronto para a batalha do dia seguinte. Transportava, num saco de napa castanha com fecho “éclair”, entre outros artigos de higiene (coisas íntimas, de senhoras), a escova de dentes, o copo de plástico e a pasta medicinal. Prezava a dentadura, muito certinha e ainda completa, e lavava-a após cada refeição, por muito ligeira que fosse, escovando-a em vários sentidos e direcções, um número exacto de vezes. As necessárias. “São as minhas pérrolas.”. E pestanejava, enlevada.

Falava, várias vezes por dia, do “marrido”. Apesar das circunstâncias bizarras, continuava a ser, para o bem e para o mal, na alegria e na tristeza, o seu esposo, o seu homem, o único que conhecera na vida e por quem se apaixonara na verdura da juventude de menina recatada. O Padrinho, (Deus lhe perdoe), não gostou do cavalheiro. Suspeitava que o bigodinho à cinéfilo, que lhe provocava sonhos eróticos, escondia interesse por dote que aconchegasse aquele pedaço ardente de castidade. Caturrices de velho, pensou. Perguntava-se como podia uma pessoa boa como o Padrinho ser levado a ter pensamentos tão horríveis sobre aquele Príncipe que, além de ser bonito, tivera educação esmerada, rara mesmo nos tempos que correm.

Paixão é paixão, os ouvidos só ouvem o que querem ouvir, e o namoro prosseguiu e aqueceu, mau grado os avisos constantes do Padrinho: “Olha que esse Fulano não é flor que se cheire. Aquelas falinhas mansas escondem alguma tramóia. Tu és uma criança, não sabes nada da vida. Depois não digas que não te avisei.”.

Que não, Padrinho, o Gustavo era um anjo que descera à Terra para a fazer feliz.

“Olha, Filha, estou cansado de gastar palavras sobre este assunto… Nunca te esqueças de que quem fizer ruim cama nela se deita.”

(continua)


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