Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O homem do acordeão

Licínia Quitério

 

O homem do acordeão
por Licínia Quitério

 

O homem do acordeão toca e do seu corpo brota uma dança que lhe põe na cintura requebros de juventude. Enquanto toca, anda para cá, para lá, os pés marcando compassos de antigas músicas. Abrindo e fechando os braços, abrindo e fechando o acordeão, abrindo e fechando o coração, a grande alegria a inundar-lhe o sorriso, os olhos vestidos de doçura, o homem do acordeão ressuscita rituais de sedução guardados na memória e que o corpo insiste em ofertar.

É belo de verdade, o homem do acordeão, que já foi de outros mundos, que já aprendeu outras falas, que já regressou da dança de roda que a vida lhe deu, que a vida lhe tirou. Foi com a força dos braços, com a lembrança intacta do cheiro da terra, do sopro da montanha, que o homem voltou, agora pronta a Casa, os filhos grandes, os netos nascidos.

Toca na festa e as mulheres cantam, os pares dançam. Todos sabem de cor as letras das desgarradas, nascidas para amenizar a dureza dos trabalhos da enxada, da foice, do malho. Todos sabem a vida de cor, a vida antes da Casa, a vida com a Casa. Foi com as músicas que seguraram as paredes da Casa, das casas que refizeram a aldeia a que nunca deixaram de voltar, com que nunca deixaram de sonhar, nas noites frias que a lembrança das músicas, “là-bas”, embalava, aquecia.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem e A Tribo – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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