Crónica de Jorge C Ferreira | Uma figura estranha

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Uma figura estranha

 

Chega um barco do Barreiro, sai um barco para o Seixal, zarpa outro barco para Cacilhas, atraca um vindo da Trafaria via Porto Brandão. É um vai e vem no estuário do rio que ilumina Lisboa.

Em Belém ninguém espera por ninguém, um cais vazio, um pontão que balança. Quando a pouca gente que parecia ser toda a gente que viajava naquele barco já estava na rua a caminho de Belém, sai uma figura estranha, gabardine, chapéu de aba larga, óculos escuros. um rabo-de-cavalo. Olha para todos os lados. Ninguém sabe se espera alguém ou se tem medo de que alguém o espere. Um marinheiro diz-lhe para se despachar que há gente que espera para embarcar. Não liga. Não faz um mínimo esforço para colaborar, segue firme, mas lentamente, o seu caminho.

Os passageiros, que esperavam que lhe abrissem a cancela para embarcar, iam discutindo que raio de figura era aquela que teimava em lhes empatar a pressa. Uns diziam que era um homem, outros uma mulher. Que tinha um aspecto andrógeno, tinha. Todos os olhares se fixavam naquela figura que subia calmamente a rampa que o levaria à luz de Lisboa. Que viria aqui fazer? Que caminho seria o seu? Teria algum objectivo especial em mente? Alguma missão?

Chegou, finalmente, à calçada portuguesa. Enquanto outros corriam para o barco. Ele olhava agora, longamente, para trás, não sei se para ver bem o caminho que tinha acabado de percorrer. Depois puxou do maço de cigarros e tirou um, que bateu com estilo no cartão do maço, e levou-o à boca. Puxou por um isqueiro que brilhava e acendeu o cigarro, deu duas baforadas, como se estivesse a aquecer o corpo, e fez-se ao caminho.

Que caminho seria o seu? Para onde iria? Dirigiu-se ao museu dos coches e deleitou a vista com o que viu. Tudo aquilo parecia não lhe ser estranho. Havia ali alguma ligação quase umbilical. O que seria? Ninguém queria pôr-se a adivinhar. Toda a gente achava tudo estranho, mas nada diziam.

Seguiram-se os pastéis de Belém. Não ligou ao Palácio do Presidente, nem à bandeira verde-rubra. Continuou esteve nos Jerónimos um tempo que todos acharam demasiado. Rezou na Igreja. Passeou nos claustros, onde também meditou. Saiu diferente. Um outro caminhar. Assim se dirigiu à Torre de Belém, onde se demorou a olhar o horizonte para lá do Bugio. Um olhar como se estivesse a sonhar com outras terras. Depois, cumprimentou os navegadores prontos para partir. Lembrou-se do túmulo de Camões frente ao qual, há pouco tempo, tinha ajoelhado e rezado. Lembrando a dedicatória dos Lusíadas.

Regressou aos Jardins onde descansou e pensou. Perguntou-se quem era, o que fazia ali. Um silêncio inundava-o, de tudo se abstraía. Ali se encontrou consigo próprio. Arranjou o rabo-de-cavalo, ajeitou as calças às botas altas. Mexeu no brinco. Ajeitou a pele da gola do casaco comprido. Decidiu que era tempo de tomar o caminho contrário. Foi novamente até à gare de Belém. Embarcou no primeiro barco. Ainda o viram na proa. Ninguém sabe para onde foi. Ninguém mais o viu.

«Olha que raio de história! Fiquei sem saber quem era aquela personagem.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes, até pode ser um sonho. Mas tem dados para dar pistas possíveis.»

Respondo.

«Percebi-te! Andas a brincar com a malta!»

De novo Isaurinda e vai, um ar de gozo.

 

Jorge C Ferreira Fevereiro/2024(427)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Uma figura estranha”

  1. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica maravilhosa e misteriosa.
    Levou -me a uma Lisboa com tanta beleza, que passa despercebida a quem a pressa não deixa ver.
    Entre a multidão a figura mistério, que,sem pressa, nem correria, nos leva ao Museu dos Coches, Jerónimos, Torre de Belém. Olhou o Tejo, meditou rezou. Lembrou Camões, grande Camões. Disse Adeus aos Navegadores e partiu.
    Tanta beleza,, tanta história, que a correria da vida não permite ver.
    Grande figura mistério, que nos afasta da correria, dos tropeços e encontrões.
    Por momentos regressei á Lisboa dos anos 70, numa idade em que ainda havia tempo.
    Obrigada Amigo por tão belo momento de reflexão.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Perfeito o seu comentário. Teria existido essa figura? Ou será pura imaginação. A minha gratidão. Abraço

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Mente maravilhosa, que não se cansa de partilhar connosco textos, que ajudam a enriquecer-nos. Absorvo com gosto, as suas palavras querido escritor.
    A tal figura estranha, talvez sem rumo, decidiu caminhar pela linda zona de Belém. Indiferente, passou o palácio do Presidente. Mas não resistiu ao Jerónimos e entrou e ajoelhou junto ao túmulo de Camões, o nosso poeta maior. Talvez se tenha lembrado, que o poeta merecia a sua singela reverência, pois decorrem quinhentos anos do seu nascimento. Será que ele sabia? Não sei. Só sei que decidiu voltar ao cais e partiu.
    Adorei esta deliciosa Crónica.
    Abraço muito grato.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Que bonito comentário. Há mistérios que assim devem ficar. A minha gratidão. Abraço

  3. Filomena Geraldes

    vou na alçada da bizarra personagem
    pouco interessa quem é.
    apenas sigo o seu percurso.
    infatigável.
    a cidade é o enigma que os seus passos desvendam.
    na zona ribeirinha persegue a rota dos que nela se espantam.
    Lisboa pode ser o rosto de um poema, a voz do passado-ao-longe
    as pegadas sem pertença
    talvez.uma quase ilha a devorar ondas.
    além dela só os pombos e as
    gaivotas que se cruzam como rebanhos
    e existe uma gigantesca porta que
    cresce junto ao mar. tudo o resto foi imortalizado pela memória.
    repara nas mãos do cronista.
    esteve com elas ao leme.
    descreveu até ao pormenor a paisagem
    foi o portulano. o diário de bordo.
    o corpo de todos os sonhos.
    as palavras que deixaram rasto.
    sem ele como teríamos conquistado o vento?
    descoberto outros continentes?
    inventado tão estranha e peculiar personagem?
    como?
    como?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Sempre os teus belos comentários. Poemas que nos deixas. Sim, tens razão. Não interessa nada quem é a figura. Interessam os caminhos percorridos. A minha gratidão. Abraço

  4. Fernanda Luís

    Olá Jorge!
    Desta vez deu-nos um enigma para desvendar.
    Quem será?
    Deduzo ser uma pessoa com rituais estabelecidos. Pertencerá a alguma organização secreta?
    Às vezes cruzam-se connosco pessoas com características muito particulares, destacando-se entre a multidão. Somos levados a fantasiar, a fazer filmes de ficção.
    Cá pra mim, pela descrição, parece-me ser membro de uma sociedade secreta, ahah!
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Se quer que lhe diga apareceu-me na cabeça, traçei-lhe um caminho. O resto é imaginação de cada um. A minha gratidão. Abraço.

  5. Fernanda Luís

    Olá Jorge!
    A crónica de hoje oferece enigma.
    Mas quem será?
    Entre tanta gente com que nos cruzamos, algumas pessoas despertam a atenção pela diferença ou características muito particulares. Aguçam-nos a curiosidade e começamos a fazer “filmes”.
    Pura ficção.
    Abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Sim, qyem será? Será alguém vindo do passado ou de um futuro longínquo? Ou não será ninguém? A minha gratidão. Abraço

  6. Claudina Silva

    Amei Que crónica maravilhosa! Quem não gosta de andar por Lisboa! Uma bênção!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina. Lisboa a minha cidade. A cidade onde nasci e percorri em todos os sentidos. Lisboa luz, encanto, mistério. A minha gratidão por estares aqui. Abraço

  7. Lénea Bispo

    Esta crónica tem todos os ingredientes que são precisos para a construção de um policial . Aquela figura estranha , solitária , a dirigir os seus passos para onde a história o chamava . Depois é outra pessoa com outro fato , outra postura a dirigir agora os seus passos para fazer o caminho inverso .
    O que mudou? Nunca saberemos, mas ele traz outro mundo dentro de si.
    Olhou o mar , certamente com ânsia de partir , lembrando navegadores a enfrentar as Tormentas . Mas tormentas temos nós muitas e , se calhar, não é preciso ir tão longe …
    O caminho de regresso era o mais seguro , agora , não sendo um homem derrotado, era um homem diferente.
    Beijinho, poeta!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lénea. Tão bom o teu comentário. Uma alegria ler-te. Um mistério por desvendar. Um policial por escrever. A minha gratidão. Abraço

  8. Ivone Maria Pessoa Teles

    Olá Amigo. Depois de longa ausência cá estou, de novo, a concordar com a Isaurinda. ” Percebi-te ! Andas a brincar com a malta ” Se descobrires, diz-me quem era. Creio que pode ser ” toda a gente e ninguém “.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone minha Amiga/Irmã. Tão bom ter-te por aqui de novo. Como sempre sábia. Tudo e ninguém. A minha imensa gratidão. Abraço

  9. Cecília Vicente

    Pelo caminho de uns e outros há sempre alguém que se destaca pela diferença,pela disponibilidade a outros suporem ou viabilizar possíveis interrogações de quem, quem será, que história carrega nos bolsos, que esconde o chapéu? Até o fumo do cigarro que rumo toma antes da decisão de escolha do caminho a tomar… Possivelmente alguém que precisava de se penetenciar com o divino , possivelmente alguém que retornará ao início da viagem e do lado contrário deixará um rasto de nevoeiro… Abraço meu amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Como me leste bem. Como gosto do teu comentário e do nevoeiro que inventaste. Uma alegria. A minha gratidão. Abraço

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