Crónica de Alice Vieira | Tremoços na feira do livro

TREMOÇOS NA FEIRA DO LIVRO
Alice Vieira

 

O mês de Junho é sempre rico de actividades.

Começa hoje, com o Dia da Criança, este ano a calhar em dia útil e por isso lá se enchem as ruas de filas e filas de crianças dirigidas pelas professoras, que vêm ver o que cada terra tem para lhes mostrar. Ou, pelo menos, apanhar ar.

Depois seguem-se os dias dos Santos Populares, as marchas—o que também anima sempre muito uma pessoa.

Mas para mim o mês de Junho é sobretudo o mês da Feira do Livro, no Parque Eduardo VII de Lisboa. Uma feira que não é só onde se vão comprar livros que namorámos o ano inteiro ,mas onde se encontram amigos, se fala com autores, se pedem autógrafos, se tiram selfies como se não houvesse amanhã (se possível com o Presidente da República , que  lá esteve na inauguração e prometeu voltar…) se comem farturas, se ouve música, etc…

E onde às vezes acontecem coisas estranhas.

Como me sucedeu a mim, há uns anos, trabalhava eu ainda no “Diário de Notícias”.

Ia eu a subir a alameda, quando me batem no ombro, e uma mulher, chapéu de palha na cabeça e cesto de pevides e tremoços pendurados no braço, me diz :

— Ó senhora , fique-me lá com isto, que eu estou muito aflitinha para ir à casa de banho.

Antes que eu pudesse dizer fosse o que fosse já ela largava o cesto aos meus pés e corria pela alameda abaixo, gritando-me o preço da mercadoria.

E ali fico eu, especada, com tremoços e pevides para despachar.

E logo aparecem amigos, conhecidos, colegas do jornal, criancinhas de olhos esbugalhados puxando a manga dos casacos das mães, “não é ela, pois não?”, uns vagos primos que eu não via há anos, “não me digas que o jornal te paga assim tão mal!” (e aqui vinguei-me da graça sem graça deles e obriguei cada um  a comprar dois pacotes de pevides e mais dois de tremoços), e eu sempre a olhar para o relógio e para a alameda para ver se a mulher voltava. Tinha um colóquio marcado para dali a momentos e não sabia que fazer ao cesto dos tremoços e das pevides. Que—diga-se em abono da verdade e da minha arte como vendedora…– iam desaparecendo a bom ritmo ,mas sempre acompanhados pelas gargalhadas do pessoal que os comprava.

Ainda pensei estar a ser vítima de um daqueles programas de “Apanhados” que então a televisão transmitia, olhei para todos os lados à procura de câmaras escondidas, mas nada.

Até que de repente oiço a voz da mulher:

–Desculpe, mas as casas de banho são tão longe, estava a ver que nunca mais voltava!

Nem digo nada, passo-lhe o cesto para as mãos, mais o dinheiro feito nas vendas, e preparo-me para correr até ao pavilhão onde o colóquio já devia ter começado.

–Ó senhora, tome lá! –grita ela.

Olho para trás: a mulher estende-me um pacote de tremoços e outro de pevides.

–É para lhe pagar o trabalho!—diz.

E logo acrescenta, olhando as moedas que lhe entreguei:

–Sim senhora, você percebe disto!

Pega no cesto, enterra melhor na cabeça o chapéu de palha e lá vai alameda acima à procura de freguesia.

Ainda tive receio de que se lembrasse de me convidar para sócia no negócio…mas não.

De qualquer modo, desde essa altura encaro o futuro com muito mais optimismo : neste tempo de crise, se por acaso o meu trabalho na editora  escassear, já sei que me safo a vender tremoços e pevides.

 

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