Crónica de Alice Vieira – Recordações de Novembro

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Recordações de Novembro
Alice Vieira

 

Talvez tenha sido por causa desta chuva, deste mau tempo, destes dias cinzentos com a noite a ameaçar às quatro da tarde, ou talvez não tenha sido por nada disso—o certo é que ,ao começar a escrever esta crónica, dei comigo a recordar duas datas ainda e sempre muito dolorosas para mim.

Por motivos diferentes, e a magoarem também de maneira diferente.

No dia 30 de Novembro de 1975 morria, no Brasil, Erico Veríssimo. É provável  (é quase certo…) que este nome não diga nada hoje às gerações mais novas—e se calhar muito pouco às outras. Temos memória curta e, no que toca a nomes de escritores, memória curtíssima. Como aquelas pessoas que dizem “eu, para nomes…”

Não houve escritor nenhum que me tivesse influenciado tanto como ele.

Acho mesmo que a vontade de escrever, a descoberta da maravilha que era usar as palavras para contar uma história—e, mais do que isso, para transmitir uma emoção—foi com ele que aprendi.

Porque ele chegou à minha vida quando eu tinha apenas seis anos. Li tudo o que encontrei, percebesse ou não a história mas cativada pela música das palavras.

Lembro-me sempre das primeiras linhas do romance “As Aventuras de Tibicuera”:

“Eu nasci na taba de uma tribo tupinambá”

Aos 6 anos ( e onde ainda vinham as telenovelas…) eu não sabia o que era “taba” , acho que nem “tribo”,e então ”tupinambá” passava-me de todo —,mas repetia a frase vezes e vezes em voz alta porque nunca tinha ouvido nada com aquelas sonoridades.

Paixões destas não acabam nunca.

Foi-me sempre acompanhando.

E em adolescente tive a certeza absoluta de que ele me tinha conhecido, quem sabe se numa outra vida, pois só assim se compreendia que ele tivesse feito o meu retrato em “Clarissa”. Aquela era eu, sem sombra de dúvida.

(Muitos anos depois dei o livro a muitas adolescentes e todas elas me diziam o mesmo: “a Clarissa sou eu.” E quando eu dizia que o livro tinha sido escrito em 1939, nenhuma acreditava.)

Trago sempre um retrato dele na minha carteira—juntamente com os retratos da família, dos amigos e dos homens da minha vida.

É uma fotografia muito bonita, em que ele está debruçado sobre a máquina de escrever, e uma luz incide sobre a sua cabeça, tornando-o no único foco de claridade no meio de uma sala muito escura.

Foi um dos filhos que me ofereceu a fotografia –igual à que fui encontrar tempos depois numa sala da Universidade de Brasília, e eu a dizer para a professora que me esperava, “olhe, tenho uma igual na carteira!” e ela  “sério? “ , e eu a tirá-la e as duas ali em adoração…

Não me perdoo não ter chorado suficientemente a sua morte.

Mas ele morreu em pleno ardor revolucionário, o 25 de Abril tinha pouco mais de ano e meio, ninguém tinha tempo então para pensar nessas coisas. Acho mesmo que nem dei por isso—e tenho a certeza de que os jornais de então também não devem ter gasto  muito espaço com a notícia.

Os jornais…Pois…

Falemos então de jornais
Porque a outra recordação triste que me traz o dia 30 de Novembro tem a ver com jornais: foi nesse dia, em 1990 , que morreu o “Diário de Lisboa”. Que, para mim, foi muito mais do que um jornal: foi o lugar onde se desenhou a minha vida inteira.

Subi aquelas escadas pela primeira vez nos anos sessenta. E deve ter sido o cheiro do chumbo que se entranhou nas minhas veias e de lá nunca mais saiu.

Ali percebi, pela primeira vez, como se escrevia uma notícia , como se deviam evitar adjectivos inúteis—e aprendi as muitas artimanhas para os textos passarem na censura.

No “Diário de Lisboa” conheci o primeiro homem da minha vida. O chefe da tipografia seria padrinho da minha filha, que sempre o  amou de paixão até à sua morte. Fernando Assis Pacheco foi uma espécie de “baby-sitter”, olhando por ela na redacção, deitada na alcofa e entre montanhas de papelada, enquanto eu saía para algum serviço (onde é que se podia fazer isso num jornal dos nossos dias de hoje…)

Claro que a minha vida se fez, anos depois, por outros jornais.

Mas estas são duas mortes que me hão-de magoar sempre.

E que não esquecerei nunca.

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