Crónica de Alice Vieira | O dia da Mãe

Crónica de Alice Vieira 

 

O DIA DA MÃE
Alice Vieira

 

Há um romance inglês muito conhecido, chamado “O Mensageiro”, que começa por uma frase que, se calhar, ainda é mais conhecida (e citada!) do que ele:

“O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas fazem-se de outra maneira”

Apetece-me parafrasear, dizendo:

“A Europa é um país estrangeiro: lá as coisas fazem-se de outra maneira”

E isto a propósito de mudanças que nos são impostas, vá-se lá saber porquê.

O Dia da Mãe, por exemplo.

O Dia da Mãe era no dia 8 de Dezembro.

Foi sempre, desde que me lembro de ser gente.

Era um dia bonito, era feriado, podia estender-se pela tarde fora o almoço com as mães e as avós (nessa altura as avós ainda não tinham direito a dia especial, e partia-se do princípio – lógico… – de que, se eram avós, é porque antes tinham sido mães)

E, nas semanas anteriores, a gente trabalhava que era um disparate nas aulas de Lavores.

Nesse tempo em que eu fui criança as escolas chamavam-se liceus e dividiam-se em liceus masculinos e liceus femininos.

E nos liceus femininos havia assim umas disciplinas estranhas, entre elas a de “Lavores” – que iria fazer de nós (pelo menos as professoras e as nossas mães acreditavam nisso com toda a força dos seus corações…) verdadeiras fadas do lar.

E nessa altura, a profissão que todas as mães sonhavam para as filhas era, evidentemente, casar com marido rico.

E, para se apanhar marido rico, era preciso saber fazer tudo numa casa, desde pregar um botão, a cozinhar um suflé que não baixasse ao sair do forno.

Nas aulas de “Lavores” aprendia-se a cozer botões, a fazer bainhas, a bordar a ponto de cruz, a ponto pé-de-flor, e a ponto de Assis, a tricotar casaquinhos de malha e botinhas para bebé, a termos, verdadeiramente, mãos de anjo.

Quem nos levasse, levava um tesouro.

Podíamos dar erros de gramática, nunca ler um livro na nossa vida, não passar da tabuada dos 2 (e, mesmo assim, contando pelos dedos), não distinguir o Infante D. Henrique do Cardeal D. Henrique, baralhar rios e afluentes, não ir além do “merci” e do “thank you” – que ser fada do lar não passava por aí.

E então, quando se avizinhava o Dia da Mãe, para lá de sermos meninas prendadas era também preciso mostrar que éramos meninas caridosas, e que pensávamos imenso nos pobrezinhos.

Nesse tempo a caridade também era assim uma coisa estranha.

Havia dias especiais para se ser bom, e as mães das meninas que andavam nas escolas ( e nessa altura havia muito poucas meninas pobres nas escolas…) tinham todas  o seu ”pobrezinho de estimação” que, a um dia certo, lhes batia à porta, para a “esmolinha do costume”.

Lá em casa havia “a pobrezinha das 5ªfeiras.

Então, quando se aproximava o Dia da Mãe, nas aulas de Lavores das escolas, as meninas coziam desesperadamente, bordavam como se não houvesse amanhã, faziam fraldas para as crianças todas – porque, no dia 8 de Dezembro, fazia-se uma enorme exposição desses trabalhos, que depois eram oferecidos “às mães pobrezinhas” que cada liceu protegia…

E as professoras insistiam sempre em que devíamos escolher materiais muito resistentes (o pano das fraldas era duríssimo, o tecido das colchas dos berços era duríssimo…) porque –e repetiam, repetiam..— era tudo para pobrezinhos , e tinha de durar uma vida.

Ver desfilar, no ginásio do liceu transformado em sala de exposições, uma série de mulheres, de olhos no chão e senhas na mão para receberem a “esmola das meninas caridosas” é das imagens que tenho mais presentes da minha infância.

Confesso que nunca tive grande queda para a costura (nem para o destino de “fada do lar”, como se veio a verificar mais tarde…) – e era sempre a minha tia Aurora que acabava por re-fazer a fralda que eu devia entregar, e que já estava negra de andar aos baldões na pasta, entre os cadernos e os livros, e com uma bainha mais torta que as curvas do Marão, e com manchas de sangue de todas as picadas das agulhas nos meus dedos inábeis.

“Para eu não fazer má figura”, dizia.

Com o 25 de Abril tudo isso, felizmente, acabou.

Mas o Dia da Mãe – que não tem culpa do que fazem com ele…– continuou a festejar-se no mesmo dia, e era bom aproveitar o feriado para darmos um bocadinho mais de atenção às nossas mães e avós, e ouvirmos as suas histórias sem pressa.

Até que veio a Europa.

E lá desapareceu o Dia da Mãe a 8 de Dezembro – substituído por um dia-sem-dia certo, que a gente nunca se lembra quando é.

Agora o Dia da Mãe é no primeiro domingo de Maio.

É preciso assentar na agenda para não nos esquecermos.

Que graça é que isso tem?

Mas a Europa é um país estrangeiro, e não entende estas subtilezas.

 


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