Crónica de Alice Vieira | Mafra em festa

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MAFRA EM FESTA
Alice Vieira

 

Deslumbrado com o ouro que vinha do Brasil (se o Bolsonaro existisse, nada tinha sido assim…), D. João V desatou a gastar que nem um doido (se a União Europeia existisse também nada tinha sido assim…), e fez a Basílica da Estrela, e fez a Igreja de S. Roque e, como promessa para a rainha lhe dar descendência, fez o Convento de Mafra.

Há ouro ?  Claro que havia.  Toneladas dele. Em certos anos—diz-se—mais de vinte toneladas. E diamantes também. Então que se faz com tudo isto?   Gasta-se, obviamente.

Deu resultado.

Não logo, logo, que estas coisas levam o seu tempo, é preciso esperar.

Mas hoje , neste mês de Julho de 2019, o Convento de Mafra—mais o palácio, a basílica, o jardim do Cerco e a Tapada –pertence ao Património Cultural Mundial da Unesco.

E eu lembro-me de ser miúda e viver aqui por perto,  e ver o olhar desdenhoso dos meus velhos tios quando nos visitavam, encolhendo os ombros e murmurando  ”Jasus, que coisa tã grande…Para que foi preciso construir uma coisa daquelas…”

A minha tia Maria, coitadinha, que raramente se levantava do banco diante da sua casa, na aldeia das Lapas, o único monumento que devia ter visto na vida era a azenha no meio do rio Almonda, que passava à sua porta.

Levava a mão à cabeça e nem acreditava:

“Ó Zé, como é que a mulher podia andar por estes corredores , que nunca mais acabam , a tratar dos cachopos?”

“Qual mulher?”

“Atão, a rainha, quem havia de ser… Não havia aqui uma rainha? Há bocado vi ali numa sala o berço dos cachopos… Que canseira…”

E aproveitava logo  para se sentar , porque aqueles corredores eram demais para as forças dela.

Nós ríamos sempre muito quando o tio José e a tia Maria vinham ver-nos. E vá de os levarmos sempre ao convento.

E lembro-me de lhes dizer, de vez em quando :

“Sabem como é que aqui chamamos a isto? O calhau… “

O que eles se riam.

“O calhau… Tá boa, sim senhor…O calhau…Bem visto…”

E para nós ficou sempre o “calhau.”

Acho que foi o “Memorial do Convento” que me fez ver “o calhau” com outros olhos. E por isso estarei sempre grata ao José Saramago—e à Isabel da Nóbrega, que foi quem inventou o extraordinário nome de Blimunda.

Baltazar e Blimunda—os novos heróis do Convento de Mafra.

Baltazar Sete-Sóis, braço amputado em guerras por onde andara, Blimunda Sete-Luas , a ver por dentro dos olhos das pessoas e a receber-lhes as vontades.

Baltazar e Blimunda, a darem outra vida ao Convento e a meterem-se nas nossas vidas

E foi tudo isso que esteve , já em 2014 , na base da organização de uma comissão de estratégia  para o processo de candidatura do Convento a Património da Unesco, liderada pelo meu querido amigo (e companheiro de muitas lutas…) Elísio Summavielle, então vereador do PS na Câmara de Mafra.

Claro que o trabalho foi de muita gente, e todos estão de parabéns, e toda a vila está de parabéns.

D. João V, Saramago, Baltazar e Blimunda—estão todos de parabéns

Mas convém lembrar os que primeiro se lembraram.

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira.


 

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