Crónica de Alice Vieira | Denúncias

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DENÚNCIAS
Alice Vieira

 

Pronto, está bem, a culpa é minha.

Pois deve ser. A palavra hoje em dia é comum, eu sei. Uma palavra como outra qualquer.

Mas, que é querem, custou-me ver numa revista séria que por cá se publica, na página dedicada à correspondência dos leitores, um e-mail para onde se pede que enviemos “as nossas denúncias”.

Ora todos sabemos como a nobre arte da denúncia tem sólidas raízes entre nós.

No tempo do Senhor D. João III (e nos tempos que depois se seguiram…) muitos foram os que acabaram nas fogueiras da inquisição, denunciados por vizinhos, familiares ou amigos, prontos a jurar que os tinham visto, por exemplo, “a ter comércio com o demónio”, ou a “apartar-se da nossa santa fé católica, passando-se à lei de Moisés, vestindo camisas lavadas aos sábados, e jejuando às 2ª e 5ª, e não comendo carne de porco”.

Sabe-se como a nossa santa fé lhes ficou eternamente grata.

Muito mais tarde, nos saudosos tempos do Estado Novo, a nobre arte da denúncia foi de novo instaurada.

Uma legião de impolutos cidadãos, amantíssimos esposos e extremosos pais de família, encarregava-se de escrever cartas denunciando vizinhos, colegas de trabalho, familiares, amigos, ou vagamente conhecidos, jurando que os tinham ouvido falar contra a ordem estabelecida, denegrindo a figura do Sr. Presidente do Conselho, ou pondo em causa a nossa patriótica presença em África, ou ouvindo rádios a soldo de potências inimigas estrangeiras, ou acolhendo gente suspeita em suas casas pela calada da noite.

Assim o juravam e assinavam, a bem da nação.

Sabe-se como a nação lhes ficou eternamente grata.

Como se vê, está-nos na massa do sangue.

E se já existissem e-mails e net no tempo do Senhor. D. João III ou do Dr. Oliveira Salazar, que jeito que tinha dado.

Todas as palavras têm uma carga simbólica, muito para lá do seu estrito significado, que não podemos ignorar.

“Nunca fui espião nem denunciante”, escreve o Régio no seu “Príncipe com Orelhas de Burro”; e o Fialho, nas suas prosas, diz “sempre me repugnou o denunciante”.

Claro que me podem já apresentar 500 significados inocentes da palavra, pois podem, mas para mim a denúncia parte sempre de homens de gabardine e chapéu enterrado na cabeça, sentados entre nós nos cafés para ouvirem tudo o que se dizia e reportar à polícia.

Eram as denúncias que enchiam as prisões de Caxias e Peniche.

Sim, eu sei, já se passaram 45 anos. Já não há prisões em Caxias nem Peniche. Podemos falar e escrever à nossa vontade.

Mas as palavras continuam na nossa cabeça.

E os denunciantes, lá no fundo, no fundo, nunca mudam.

 


Poder ler (aqui) as outras crónicas de Alice Vieira.


 

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