Crónica de Alice Vieira | Confinar ou desconfinar…

Confinar ou desconfinar…
Por Alice Vieira

 

E cá andamos, mais ou menos desconfinados, mais ou menos mascarados, mais ou menos alcoolizados (eu sempre disse que o álcool curava tudo, mas as pessoas riam-se…)

Adapto-me bem a esta nova vida.

Leio por aí que os remédios  que as farmácias mais vendem actualmente são anti-depressivos e ansiolíticos

Acontece que eu andava a tratar-me com uma psiquiatra antes da pandemia, por causa de uma depressão. Angústias, um sufoco no peito, tinha de sair de casa às seis da tarde porque não suportava estar entre quatro paredes (“a hora do lobo” chamava-lhe ela ), coisas assim. Tomava ansiolíticos que ela me prescrevera.

Com a pandemia, passou-me tudo. Mas tudo.

Acordo bem disposta, não tenho angústias nenhumas, sinto-me bem em casa, escrevo textos divertidos para um projecto em que estou inserida – e aqui há dias (quando os restaurantes  começaram a abrir mas só para muito poucos clientes) eu estava num deles com um neto (respeitando distâncias, máscaras, tudo como deve ser ) e, no final, quando pedi a conta, o dono perguntou-me se não quereria lá ficar mais um bocadinho. Disse que sim, não tinha nada que fazer, mas perguntei -lhe porquê.

“Ah, é porque as suas risadas estão a animar tanto isto…”

Mas agora há uma coisa que sinceramente me perturba : quando toda a gente aplaude o desconfinamento e quer sair de casa … eu faço tudo para não sair … Se preciso de ir ao supermercado (é  a porta mesmo ao lado da minha…) penso, penso, e remato quase sempre : “vou amanhã”. Se preciso de ir à farmácia (no fim da minha rua) penso, penso e remato sempre “ainda tenho comprimidos que cheguem para hoje”

E lembro-me sempre de uma história de um autor húngaro, que li há muitos anos, mas que nunca esqueci. É um pouco ao contrário da  minha, mas há qualquer coisa que as une. Não me lembro do nome do autor (húngaro…) mas era um livro de histórias muito breves, meia página não mais, traduzido pelo meu amigo Ernesto Rodrigues .

Uma mulher, prisioneira há muito tempo, com uma filha de 4 anos, ia ser posta em liberdade. Então ela veio com a criança até junto do arame farpado e foi-lhe explicando que iam para casa. “E o que é a casa?”, perguntava a menina. “Então, era onde morávamos, ali atrás daqueles montes,  deixaste lá o teu ursinho…”

“E vamos viver para lá?”

“ Claro, vamos viver para lá…Vais gostar muito”

A menina esteve uns segundos calada.

“Mãe…”

“Sim? “

“E de lá pode-se fugir?”

E pronto, era só isto que vos queria contar.

Bom Santo António.

Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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