Crónica de Alexandre Honrado – Os perdedores

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Os perdedores
Por Alexandre Honrado

 

Há em democracia, apenas em democracia, a saudável liberdade de falar, de interpretar, de sentir, agir e pensar livremente e sobretudo de aceitar. É talvez esta última característica, a da aceitação, que empurra a democracia para  as ribas, para a ponta dos penhascos mais perigosos, por estabelecer princípios da tolerância, por perseguir ideais de equidade, por acreditar na justiça (do estado de direito à justiça social), tentando não ser igual aos regimes que a ela se opõem, as ditaduras, chamem-se como chamarem, venham deste lado ou do lado contrário, dando espaço ao inimigo, mostrando-lhe como os conceitos são tão diferentes entre ambos.

De um modo simples: conceitos contra preconceitos, é essa a história.

Em democracia amimam-se os factos, à espera que o sistema encontre o seu equilíbrio. Aceita-se que um fascista amador concorra às eleições – já os vimos noutros países e com que desastrosas consequências, pois profissionalizaram-se e revelaram bem ao que vinham -, e dá-se-lhe crédito em nome das liberdades (ele que se expresse, ele que concorra, ele que nos traia impunemente, desdenhando do sistema de que é um parasita, vivendo do rendimento máximo garantido que a democracia, por vezes com esforço, lhe leva ao bolso com os cumprimentos dos lesados (seja do ordenado, dos subsídios, da percentagem que lhe pagamos por cada voto e sobre os quais constrói fortuna).

Li na sequência das últimas eleições, ao lado de grandes reflexões, os argumentos mais torpes, alguns de pura idiotice, quase todos de incapazes que não lutam com as inúmeras e quase infinitas armas que o sistema tem, para eles e para todos, ficando do lado cobarde das sombras e da náusea. Alguns nunca votaram, só agora. Chegou a hora do ácaro abandonar a alcatifa, fofa e quente. Outros, esperaram recalcados e azedos para vingar o que aos seus avós pareceu uma afronta.  Outros, são apenas claques sem causa, que gostam do caos e do confronto marginal. Até houve quem escrevesse que a abstenção era uma crítica à República – como se a monarquia não fosse, aliás, mais um camião de lixo, apenas com uma matrícula diferente e um GPS obsoleto.

Só quem lucrou com o fascismo ou não o conheceu pode agora estar a apoiá-lo. Um fascismo ainda lorpa, liderado por um lorpa com o aspeto de um daqueles zíngaros das histórias de outros séculos, que diz frases feitas e procura ser o eco de frases à toa. Um fascismo assim, onde não falta o caudilho e o anão de feira que o adula, nem a simbologia barata e a falta de ideias. Sequer os atores amadores contratados por fraca verba, para passarem por inimigos (sim, já são conhecidos alguns dos que se mascararam de cigano a troco de 50 e de 100 euros, mais almoço, para andarem por aí a dar “força” aos “argumentos”).

É uma estrutura derrotada e de derrotados, porém perigosa.

Oferecer de bandeja a passadeira vermelha ao passado, é desejar um futuro de sangue e luto.

Em que porões do pensamento ficou guardado o melhor de nós?

A humanidade é a única culpada pelos horrores que cometeu. Tudo o que aconteceu no decurso do século XX, além de desmentir o otimismo, deixou-nos a herança pesada de restabelecer os valores e procurar soluções definitivas para os maiores problemas da condição humana.

Como é que o fascismo cresce num mundo de humanistas, de cristãos, de sociais-democratas, de democratas cristãos, de socialistas, de comunistas, de democratas em geral, de gente de bem?

Está longe o tempo em que, no século XVIII, as instituições políticas e as formas de vida social, a filosofia e a relação entre os seres humanos, pareciam estabelecer a qualidade de um mundo novo, em que a cultura, a sabedoria, a solidariedade, os direitos humanos seriam a marca do futuro.

Quem se apropriou das melhores ideologias traiu esses princípios, ergueu barreiras ao que ainda hoje mais nos encontraria: o juízo moral, a sensibilidade estética, o amor (pelo Outro, pelo Bom, pelo Belo) e uma plataforma comum e respeitada, a terra habitada e o direito a tê-la como coisa nossa e defendida.

Vieram os extremismos, os extermínios, os genocídios, os populismos. Vieram medos antigos e novos medos. E sobretudo vieram os cobardes que só avançam quando veem a fragilidade dos outros, para ganhar com isso.

O caminho feliz do conhecimento do mundo, que era feito de estradas do interculturalismo, das ciências e das técnicas, do reconhecimento das diferenças e do nivelamento igualitário do género, das etnias, das oportunidades iguais, da construção maciça de um lugar para todos, é hoje uma mantida utopia, a tábua de salvação, a ideologia.

O fascismo saiu derrotado no dia 24. A luta tem, no entanto, de ser quotidiana a menos que desejemos a repressão, a podridão, a vergonha que o mundo já conheceu e que pode consultar nas suas memórias, onde as cicatrizes estão longe de se desvanecerem.

 

Alexandre Honrado

 


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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