Crónica de Alice Vieira | Dinheiro com juros

Alice Vieira

Dinheiro com juros
Por Alice Vieira

 

Esta semana recebi um postal—sim, ainda há quem escreva postais sem ser eu…– de um jovem professor suíço, que eu conheço há mais de 20 anos.

A primeira — e única … — vez que nos vimos, ao vivo e a cores foi em Cascais. Eu ia a sair da praia e esbarro com um rapaz, de prancha de surf debaixo do braço e com ar levemente assustado.

“Desculpe, é a primeira vez que faço isto na minha vida , mas preciso mesmo que me empreste algum dinheiro!”

E lá me explicou, num português com forte sotaque francês, que  enquanto ele tinha ido para o mar lhe tinham roubado a carteira, a roupa, tudo o que ele tinha. Regressava à Suíça no dia seguinte e não tinha um tostão.

Claro que eu não estava a acreditar em nada daquilo, mais um a tentar o golpe, mas fui conversando com ele. E a dada altura ele pára, olha para mim e pergunta “não é a escritora Alice Vieira? Foi um dia à minha escola, nós tínhamos representado uns capitulos do seu livro “O Rei da Helíria”, não se lembra?”

Claro que me lembrava. Tinha sido numa escola em Basileia, os miúdos eram engraçadíssimos.

Ficámos mais um pouco na conversa, até que ele regressou ao princípio: “desculpe incomodá-la, mas fiquei sem um tostão .Eu prometo que assim que chegar a casa lhe devolvo tudo”

E lá fui com ele a um multibanco, mas sempre pensando que era a última vez que via aquele dinheiro.

E pronto.

Passou-se bastante tempo, até que recebi uma carta dele, com o dinheiro todo que eu lhe tinha emprestado. Pedia muita desculpa pela demora, mas a professora tinha mudado de escola e ele levara muito tempo até a descobrir—para lhe pedir a minha morada.

Resumindo e concluindo: nunca mais nos vimos mas ficámos sempre a dar-nos um com o outro. Escrevíamo-nos, com o andar dos tempos fomo-nos  e-mailando, mas um postal acabava sempre por chegar.

Acabou a universidade, é professor, casou, tem um rapaz de 2 anos, esperava outra criança.

E este postal agora era para me dizer que tinha nascido uma menina e que se ia chamar Alice. “Évidemment…” rematava ele.

Acho que o dinheiro emprestado me rendeu uns bons juros…


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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