Crónica de Alexandre Honrado – O penico que ri (e algumas felicidades)

Alkexandre Honrado

Crónica de Alexandre Honrado
O penico que ri (e algumas felicidades)

 

Raphael Augusto Prostes Bordallo Pinheiro, o “nosso” Rafael Bordalo Pinheiro, foi um artista português, interventivo e dotado de grande humor, que se recriou em inúmeras peças de arte, da caricatura à cerâmica, ao teatro (subiu à cena como ator no Teatro Garrett e no Teatro Thalia, este último integrado no palácio do conde de Farrobo ou palácio da Quinta das Laranjeiras, em Lisboa), tendo sido aluno no Curso de Arte Dramática do Conservatório de Lisboa.

Precursor do cartaz artístico em Portugal, desenhador, aguarelista, ilustrador, decorador, caricaturista político e social, jornalista, ceramista e professor, Rafael marcou a vida portuguesa de uma forma singular.

Apesar de hoje ser mais recordado pelas suas peças de cerâmica, começou a atividade de artista plástico com composições temáticas realistas. As suas caricaturas, publicadas em álbuns e na imprensa da sua época (nasceu em 1846 e morreu em 1905), eram sofisticadamente divertidas – faziam rir mas punham em sentido muitos dos caricaturadas. Tudo isto que digo se encontra facilmente nas informações postas à disposição dos motores de busca da grande rede omnisciente.

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Tive o ensejo, muito agradável, de aproveitar uns momentos do confinamento assistindo (streaming) à conferência sabiamente intitulada O penico que ri, da responsabilidade de Tiago Guerreiro. A iniciativa foi do  Museu Bordalo Pinheiro que promoveu um ciclo de palestras intitulado “O Humor em Bordalo”: um conjunto de quatro apresentações dedicado a diferentes aspetos do humor na obra de Rafael Bordalo Pinheiro, assinalando os 175 anos do seu nascimento (21 de março de 1846), tendo e vista despertar a curiosidade para a obra do genial artista.

Foi exatamente neste contexto que se falou de uma tragédia: o naufrágio do Saint André, que transportava a arte portuguesa exposta em Paris e que foi o culminar de uma participação nacional além fronteiras “envolta em casos e polémicas”.

Dezenas de obras de arte – aceites como as melhores e mais ilustrativas do génio de Portugal na viragem para o século XX – mas também documentos insubstituíveis, desapareceram para sempre no dia 24 de janeiro de 1901, numa catástrofe que, “curiosamente, pouca ressonância teve nos jornais da época, ocupados que estavam com a morte da Rainha Vitória”. Tudo se deveu ao estranho naufrágio do vapor Saint André, um colossal desastre e mais uma das polémicas que rodearam a participação de Portugal na grande Exposição Universal de Paris, em 1900. Rafael Bordalo Pinheiro faria um Desenho sobre este desastre, publicado na página 104 d’ “A Paródia”, nº 63, a 27 de março de.1901, intitulado “Ainda o naufrágio do S. André”. Apresenta a imagem do Visconde de Faria, como se fosse uma boia, amarrado á proa de um barco. No fundo do mar, Ressano Garcia equipado com um escafandro, procura e questiona em vão os peixes, acerca das obras de arte naufragadas com a Nau St. André. Ao fundo, o navio naufragado. O Visconde de Faria, António de Faria, tinha sido elevado a Visconde por vontade do rui D. Luís I. E Ressano Garcia foi ministro, deputado e par do reino e terá dirigido a expansão e renovação urbana da cidade de Lisboa, sendo responsável pelo nascimento da Avenida da Liberdade e Marquês de Pombal. A monarquia, essa, afundava-se sem glória como a nau St. André. E breve a República substitui-la-ia.

Apeteceu-me contar isto. E imaginar que podemos ter um país capaz de rir culturalmente dos seus naufrágios. E também de evocar os seus artistas e respeitá-los.  E, é claro, de se sentar, em coletivo patriótico, no penico que ri – e  depois seguir em frente, para um futuro melhor.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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