Crónica de Alexandre Honrado – Ainda não estou vacinado

Alkexandre Honrado
Ainda não estou vacinado
Por Alexandre Honrado

 

A chuva não para. As ondas são maiores do que a memória.

Somos objetos moles e incapazes.

Lama. Muita lama.

Não nos preocupamos com a sintaxe, porque não é a ordem das palavras na desordem dos dias o que mais nos preocupa, mas uma insana luta contra o envelhecimento, que leva tantos a correr para as prateleiras dos cosméticos e para as mãos do cirurgião estético, esquecidos do tempo da conjugação do verbo existir, esse verbo que só faz sentido na coabitação, na existência com os outros. (Há também o grupo dos adelgaçantes e das dietas, como ainda há filatelistas, numismatas e lepidopterologistas, como há necrófilos que sonham com os seus ídolos mortos a quem a história nunca perdoará).

Entretanto, furamos filas, até quando estamos confinados.

A vacina da vizinha é melhor do que a minha.

Revejo os quadros de Paula Rego. Penso nos que gritavam que se a Lei do Aborto fosse aprovada todas as mulheres iriam abortar, todos os dias, aos milhares, e se a eutanásia passasse na votação política íamos todos começar a matar os velhinhos, todos sem exceção, e se a lei da mudança de sexo fosse aprovada iríamos todos trocar a pilinha e o pipi por ganchos de cabelo ou coisa pior e mais inútil, já sem falar da legalização do casamento homoafetivo que traria o fim do mundo ou coisa pior e nunca vista.

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É muito cansativo ouvir e ler os idiotas. E conviver com eles, pior ainda. Por exemplo, os que não se lembram do que sofreram e sofremos no passado, e que ensaiam agora rotas de derrota, aplaudindo aqueles que sempre nos odiaram.

Queria falar da Covid 19 (doença), mas constato que já há demasiados especialistas sobre o assunto, todavia ninguém à minha volta sabe o que é o Evento La Niña, que embora tenha ultrapassado o seu pico, não impediu que os impactos nas temperaturas, precipitação e padrões de tempestade continuassem. O ano de 2020 foi um dos três anos mais quentes já registados. E vai continuar assim. (Só faltava agora ouvir o Trump, a dar a neve e os nevões como exemplo de que o aquecimento global é uma ficção, longe vá o agouro!).

Mundo de loucos atracados a outros tantos loucos!

Queria falar do Coronavírus, mas leio que cerca de 20 milhões de pessoas vão precisar de assistência humanitária em 2021. Para além do que o tal do vírus Corona veio acrescentar à desgraça humana, só na República Democrática do Congo a situação é terrível por outras causas: o Ébola reapareceu; é a iminência de nova tragédia humanitária (reparem que não há registos significativos de sobreviventes ao Ébola, com taxa de morte acima dos 90 por cento).

Ponho-me a ver a chuva que não para e as ondas que são maiores do que a memória e a pensar que antigamente eu só escrevia quando estava feliz e que agora infelizmente escrevo, e escrevo, e escrevo-me sem parar. Talvez até perceber se percebo alguma coisa. Ou porque, talvez, isso seja apenas porque ainda não estou vacinado.

 

NOTA: “El Niño e La Niña são os principais motores do sistema climático da Terra. Mas todos os eventos climáticos de ocorrência natural agora, acontecem no contexto da mudança climática induzida pelo homem, que está a aumentar as temperaturas globais, exacerbando as condições meteorológicas extremas, afetando os padrões de chuvas sazonais e complicando a prevenção e gestão de desastres ”, palavras do secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), o Professor Petteri Taalas.

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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