Crónica de Alice Vieira | Onde estão os russos?

Alice Vieira

Onde estão os russos?
Por Alice Vieira

 

Com estas decisões de confinamentos, e recolher obrigatório, os noctívagos, coitados, devem sofrer muito. Os que viviam de noite, entre os jantares até às tantas, os bares, as discotecas, os cafés, os encontros de amigos– devem mesmo sentir-se muito mal. E mesmo se ainda podem ir a um restaurante para jantar, têm de olhar constantemente para o relógio, para saírem antes das onze, a dar tempo de chegarem a casa.

Tenho a sorte de nunca ter sido noctívaga. Se calhar porque tinha sempre de chegar muito cedo ao jornal, o dia para mim começava, não ao raiar da aurora, mas quase. Lembro-me que quando entrava na redacção ainda me cruzava com as senhoras da limpeza

Nunca me esqueci de uma frase de Strindberg  em que ele diz que , a partir da uma hora da tarde, “o dia está velho, cansado e com rugas no rosto”. Por isso há que apanhá-lo nas suas primeiras horas.

Os cafés aqui ao lado da minha casa fecharam todos—e eu pertenço ainda àquela geração pré-histórica dos que só conseguem trabalhar em cafés. Andei por aì às voltas e acabei por cair num enorme café (as distâncias são perfeitamente guardadas até porque há lá poucas pessoas)—e que abre as portas às 7 da manhã!! Ó maravilha!

É claro que estou sempre lá caída.

Ontem, ao contrário do que costuma acontecer, estavam umas quatro ou cinco pessoas. E uma senhora, duas mesas depois da  minha, de repente perguntou a uma das empregadas:

–Tem russos?

E eu não me pude conter e desatei a rir.

A senhora olhou para trás, espantada e foi dizendo que eram uns bolos muito bons, mas já difíceis de encontrar nas pastelarias, e ainda bem que ali havia.

Para a senhora não pensar que eu era doida ou ignorante, tive de lhe contar a história.

Também eu pensava que as pastelarias já não faziam russos, uns bolos óptimos que, não é para me gabar, eu faço muito bem. Mas ainda bem que  vão aparecendo pelas pastelarias.

Mas quando oiço falar nesses bolos vem-me logo à cabeça uma história perfeitamente idiota, que agora me faz rir, mas que nessa altura, anos sessenta, não me fez rir nada.

Eu tinha acabado de fazer russos, lindos, ovos e chocolate, a cheirarem muito bem, porque uma tia minha me tinha pedido. Ia ter visitas e, cansada de gabar os meus dotes culinários, queria dá-los a provar às amigas.

Antes de sair de casa—não havia telemóveis…– liguei-lhe e disse:

— Os  russos já vão..

E lá fui, e lá entreguei os bolos à senhora, que morava perto de mim, e voltei para casa.

À entrada da  minha porta, uma data de polícias. Já não me deixaram entrar e levaram-me para a esquadra, todos aos berros e aos safanões, a perguntarem-me onde é que estavam os russos, onde é que eu os tinha ido buscar, quem é que me tinha ajudado a trazê-los, o que é que eles vinham cá fazer,  e para onde é que eu os tinha levado agora.

Claro que eu sabia que o meu telefone estava vigiado, mas nunca na minha vida pensei que uns bolos fossem um assunto subversivo.

Passei a tarde inteira na esquadra, eles deixaram-me fazer um telefonema e eu liguei para o meu marido a contar o que se passava e ele lá se mexeu. Veio ele à esquadra e trouxe a minha tia e uns bolos…

Ao fim de muito tempo eles lá acreditaram que não havia russos nenhuns—mas só porque um colega entrou ao serviço e disse “adoro russos, e esses têm cá um aspecto…”

E pronto, lá voltámos a casa, mas a minha tia não deu os russos às amigas, porque preferiu dá-los ao polícia salvador.


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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