Crónica de Alice Vieira | Cuidado comigo

Alice Vieira

Cuidado comigo
Por Alice Vieira

 

Estou furiosa.

Há meses que ando a sonhar com o meu regresso à pátria, ou seja à Ericeira.

Primeiro aceitei este exílio porque  eram os meses de confinamento.

Depois porque era um semi-confinamento.

Mas agora em que, sempre com as devidas precauções, claro, já me podia meter num carro (transportes públicos ainda não…) e desaguar na minha varanda com vista para o mar –tenho de ficar por Lisboa pelo menos mais uma semana.

Ainda se a culpa fosse minha…

Mas não. E isso é que ainda me enfurece mais.

O meu cartão de cidadão ia ser renovado. Ligaram-me, marcaram dia e hora, e lá fui até ao Campus da Justiça, no Parque das Nações.

Aqui que ninguém nos ouve,  devo confessar que esse é o sítio de Lisboa que eu mais odeio. Talvez até o único que eu odeio. No tempo da Expo-98 passei lá os dias todos, aquilo era lindo. Mas ,depois de se ter transformado em  bairro, é uma coisa horrível. Nunca encontro  os nomes das ruas em lado nenhum, nunca percebo onde elas vão dar, terrível.

Mas pronto lá dei com aquilo,  nem estava lá ninguém e fui logo atendida.

Fotografia, dados de um cartão passados para outro, até que a funcionária me disse “vamos agora à máquina para as impressões digitais.”

E eu avisei logo :”eu não tenho impressões digitais.”

A senhora devia estar farta do trabalho, ou cheia de calor por causa da máscara, e encolheu os ombros, “as coisas que as pessoas dizem… Não tem impressões digitais……pois não, tem lá agora…vá não faça força no dedo…”

Naquela máquina não dava, mas de  certeza era eu que fazia força,e tinha de se pousar o dedo sem foça nenhuma.

Passou-me para outra colega que me levou a outra máquina.

Resumindo e concluindo : só depois de os meus dedos terem passado por cinco máquinas é que se convenceram de que, realmente, eu não tinha impressões digitais.

Aí pediram muitas desculpas, mas que não era vulgar acontecer aquilo—o pior agora é que o cartão tinha de ser feito de novo, e se calhar só daqui a “uma semanita” é que estava pronto.

E pronto. Saí furiosa, como devem calcular. E se tivesse apanhado aquela funcionária no meu caminho era bem capaz de a esganar.

Sem impressões digitais, quem é que me podia prender ?

Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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