Crónica de Alice Vieira | Os livros certos

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Os livros certos
Alice Vieira

Era um fim de tarde de conversa mole, numa esplanada minúscula, mesmo à beirinha da rua, destas que agora se descobrem a cada esquina da cidade para combater a proibição de fumar no interior dos cafés.

Ao meu lado uma criança morria de aborrecimento, até porque o calor não convidava a grandes exposições quietas ao sol.

Torcia-se na cadeira, batia com as mãos na mesa, tentava escorregar e sair, mas a voz da mãe lembrava-lhe que na rua passavam carros e era um perigo, ela que estivesse sossegada.

E a mãe continuava embalada na conversa com uma amiga e nem dava por ela.

E de repente a minha filha murmurou :

–Nunca me lembro de ter saído de casa sem um livro, e somos tão felizes aos 9 anos quando lemos os livros certos…Será que as crianças hoje ainda lêem os livros certos?”

Estava eu a pensar no que seriam “os livros certos”, mas a minha filha continuava a falar.

E começou depois numa série de intermináveis

“e tu lembras-te?…”

todos relacionados com cenas de livros que há muitos anos tínhamos lido em conjunto :

“ Lembras-te daquele verão na Ericeira, em que tu nos leste o “Coração” do Edmundo d’Amicis inteiro? Do princípio ao fim? Íamos para a cama e tu pegavas no livro e ali ficavas à nossa beira a ler…Tu a leres e a gente a chorar, a chorar…E aqueles diálogos inteiros que sabíamos de cor, ou apenas frases, ou apenas palavras, ou aqueles nomes tão típicos de certas épocas, os “Leôncios” da Condessa de Ségur, lembras-te? Acho que foi com a Condessa de Ségur que percebi pela primeira vez o que era a luta de classes…–disse ela, entre gargalhadas, –os criados tão separados dos patrões, castigados por tudo e por nada, e os pobrezinhos tão sacrificados e tão bonzinhos…Só podia dar no que deu…!”

Ainda nos rimos—mas a verdade é que hoje as crianças já não têm tempo para “livros certos”, aquilo a que vulgarmente chamaríamos “os clássicos”.

Têm muitos outros para ler. (Se é que os lêem…)

Mais actuais.

Até porque — todos garantem—já nem se interessariam por esses.

Não é verdade.

E a falta que esses livros lhes fazem…

A falta que lhes faz a leitura daquelas histórias sem negras magias, sem guerras do princípio ao fim, sem tenebrosos inimigos atacando a humanidade (está bem, os bons acabam por vencer mas às vezes a fronteira entre o Mal e o Bem é tão ténue, e até que isso aconteça, meu Deus, quanta sangueira derramada, quantos pesadelos, quantos mortos, quanta gritaria…), aquelas histórias que lhes dão vontade de crescer e de acreditar nas pessoas (têm muito tempo depois para perceber o que se passa…)

Aquelas histórias que as tornam crianças felizes.

Hoje há uma única preocupação em relação às crianças: passar-lhes para as mãos um computador (smartphone, tablet…) o mais cedo possível.

Agora, quando um pai vai ver o seu rebento acabado de nascer, juntamente com a proposta de sócio do Benfica, deixa-lhe no berço um computador (smartphone, tablet…) topo de gama.

Habituadas desde sempre aos meios frios, como poderão elas ter, um dia, o coração aquecido?

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