De ontem e de hoje – Ir a Lisboa por Licínia Quitério Iam a Lisboa visitar as velhas amigas que há muitos anos, tantos quanto somavam três gerações bem contadas, emigraram para a cidade, levadas pelos pais, em busca, como todos os deslocados deste mundo, de melhor fortuna. Moravam numa grande cave que servia de habitação de porteiro, com muitos compartimentos e um longuíssimo corredor. Só menos de metade da casa recebia luz do exterior, através de pequenas janelas basculantes, abertas e fechadas com o auxílio de uma comprida…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Coisas velhas
De ontem e de hoje – Coisas velhas por Licínia Quitério Nas casas sempre habitam coisas velhas, antigas, gastas, feridas pelo tempo, pela desatenção, preteridas pelas novas recém-chegadas, com outro brilho, outra utilidade, diferentes no desenho e na cor. Nas mudanças de casa, nas mudanças de gente, escaparam à devora de usurários e ao lugar dos lixos. Foram-lhes concedidos sótãos esconsos, gavetas, arcas de memórias. Quando chegaram até mim, procurei-lhes as feridas, tratei-as como pude, fui espreitando as marcas que me contassem histórias de outro tempo, de outra gente.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O PBX
De ontem e de hoje – O PBX por Licínia Quitério A miúda gostava das tardes quentes de verão na aldeia quando a tia Arminda, encostada a porta da rua da saleta, limpava com um lencinho as pérolas de suor da testa e do decote e se sentava frente ao aparelho do PBX para tirar cavilhas, meter cavilhas, baixar patilhas, levantar patilhas, com o olhinho atento às luzinhas que acendiam ou apagavam. E a voz era doce, delicada, ao dizer, Boa tarde Torres, Dê-me troncas, Ó Torres dê-me o…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Falência
De ontem e de hoje – Falência por Licínia Quitério Com voz seca e bem timbrada, a juíza proferiu, nos termos da lei, a sentença: FALÊNCIA. Logo fechou os livros, tirou os óculos e arredou ligeiramente a cadeira para melhor se levantar. Se fosse num filme, teria surgido a palavra FIM sobreposta a uma última imagem definitivamente paralisada. A assistência engoliu por breves segundos a palavra sentenciadora, há tanto esperada quanto temida, que sobre eles acabava de desabar. Os homens e mulheres, de cabeleiras maioritariamente acinzentadas, levantaram-se. Lentamente, sem…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O banquinho
De ontem e de hoje – O banquinho por Licínia Quitério Eu era pequena, franzina, nos meus oito anos, e o banquinho rectangular, de duas abas fixas, um buraquinho no tampo, dava um jeitão para eu chegar ao parapeito da janela e apoiar os cotovelos. Eu sabia muito pouco da vida que ainda em mim era tão curta, mas lia, sabia ler desde os quatro anos, e lia o que aparecia em casa: O Primeiro de Janeiro ao fim de semana, A República diariamente, chegada pelo correio, com o…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Dona Sara
De ontem e de hoje – Dona Sara por Licínia Quitério A senhora tem os rituais que os oitenta e tantos anos lhe exigem para poder abrir os dias e pensar, estou só mas estou viva, graças a Deus. Aguenta-a aquele mau génio que os outros referem quando dizem, sempre foi uma peste, e desfiam pecados passados de dona Sara. Sabem lá eles do que falam, de quem falam, só ela sabe de si, de quanto amou, quanto odiou, quanto chorou, quanto lutou para tratar dos velhos lá de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Aparição
A Aparição por Licínia Quitério A gente vai ali e já vem, o que tem a fazer não é coisa de levar mais de uma hora e, depois de tudo feito, senta-se um bocado a tomar um café, a cumprimentar este e aquela, a sossegar, a olhar a rua, sossegada rua de bairro sossegado de sossegada terra. Do lado de lá, envolta no sossego, a aparição de um homem velho, alto, muito magro, de barbas brancas a excederem a máscara que a pandemia trouxe. Era o que nos…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os filhos
Os filhos por Licínia Quitério A cabeleireira tem um filho que não quer comer. Não quer comer ou não quer que a mãe queira que ele coma. Só quer o tablet que o tio lhe ofereceu para ver os bonecos tão feios, mas de que ele gosta muito. É tão engraçado ver como ele já sabe mexer naquilo com os dedinhos gordinhos a deslizarem para cá para lá e os bonecos horríveis a fazerem caretas, a gritarem. O que vale é que ele lá vai mastigando enquanto joga…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Seria mesmo ele?
Seria mesmo ele? por Licínia Quitério Há meia dúzia de anos, num transporte público, sentei-me ao acaso ao lado de um desconhecido. Puxei pela sandes de queijo e comecei a comer com avidez, porque tinha estado em jejum de obrigação. Já a sandes se aproximava do fim, quando o sujeito se inclina para mim, me toca ao de leve com o ombro e exclama, isso é que é larica, e ri-se. Afastei-me, olhei-lhe o perfil e com cara de poucos amigos disse, pois. O sujeito continuou a rir,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O meu computador
O meu computador por Licínia Quitério Desbravar um computador, nos finais do século vinte, teve o seu quê de aventura para quem como eu aprendeu a escrever com caneta de pau, aparo de folha molhado em tinteiro de vidro, salpicos de tinta na folha de papel, no bibe e no chão. Aventura talvez comparável a ser largado de noite numa cidade grande aonde vamos pela primeira vez. Tudo o que sabemos é que ela existe, está ali à nossa volta, mas não sabemos por onde seguir, nem o…
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