Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Seria mesmo ele?

 

Seria mesmo ele?
por Licínia Quitério

 

Há meia dúzia de anos, num transporte público, sentei-me ao acaso ao lado de um desconhecido. Puxei pela sandes de queijo e comecei a comer com avidez, porque tinha estado em jejum de obrigação. Já a sandes se aproximava do fim, quando o sujeito se inclina para mim, me toca ao de leve com o ombro e exclama, isso é que é larica, e ri-se. Afastei-me, olhei-lhe o perfil e com cara de poucos amigos disse, pois. O sujeito continuou a rir, a dizer, não me conheces, e eu, não o conheço de lado nenhum, o senhor deve estar enganado, e ele ria-se, ria-se, não estou nada enganado. Já eu pegava na mala e me preparava para mudar de lugar, incomodada com aquela parvoíce de velho, quando ele, agora mais sério, diz, não te vás embora, já não conheces um gajo chamado JT?

Não, não o reconheci, somos velhos amigos, fomos companheiros de colégio e de outras guerras, mas passamos muito tempo sem nos vermos. Ele disse, eu estava disposto a continuar a intrigar-te, mas tu ficaste mesmo brava, e eu deixei a brincadeira.

Continuámos a viagem a conversar, ele mais animado do que eu, despedimo-nos, até à próxima. Toda a vida me aconteceram cenas destas. Não tenho memória para fisionomias e agora que os meus amigos ficaram velhos e deles guardei apenas os seus rostos de outrora, acontece-me brincarem comigo, ou zangarem-se, pensando que não lhes ligo.

Aqui para nós, ele seria mesmo o JT, o rapaz garboso dos vinte anos, ou aquele velho sem graça a fazer-se engraçado, a tomar-me por parva?

Eu estava brava, disse ele. Tal como aos vinte anos. Há coisas que o tempo ainda não conseguiu mudar em mim. Só o meu rosto mudou, tal como aconteceu ao do velho meu amigo. Este encontro casual deu-me assim uma espécie de espelho a quem perguntei, como a da história, com adaptações, claro:

– Diz-me, espelho meu, quem é a mais jovem da floresta?

Não me desiludiu a resposta. Os espelhos mentem muito, é o que se sabe.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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