Crónica de Licínia Quitério | Falar sozinho

  De ontem e de hoje – Falar sozinho por Licínia Quitério   Fala muito sozinho, em casa, sem que ninguém o oiça, só o King, cão de raça, cão bonito, fiel como se diz de um cão ou de um criado, sempre obediente às ordens, vem cá King, vai King, quieto King, senta King, deita King, muito mais obediente do que qualquer criado, útil, com aquele olhar de eterno mendigo, só mesmo o King para lhe ouvir os disparates e não os contar a ninguém. Que pode um homem…

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Crónica de Licínia Quitério | Que linda falua

  De ontem e de hoje – Que linda falua por Licínia Quitério   Era assim a cantilena das meninas, no pátio da escola : ”Que linda falua que lá vem, lá vem, é uma falua que vem de Belém. Eu peço ao Senhor Barqueiro que me deixe passar, tenho filhos pequeninos não os posso sustentar. Passará, não passará, algum deles ficará, se não for a mãe à frente, é o filho lá de trás.” O barqueiro ia decidindo a sorte desta e daquela e da outra, com o dedo…

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Crónica de Licínia Quitério | A pergunta

  De ontem e de hoje – A pergunta por Licínia Quitério   A cozinha tinha uma porta que dava para o quintal, e na porta havia um postigo, um qua­dro de quatro vidros. Naquele tempo, havia muitas moscas que poisavam e caminhavam nos vidros, vagarosas. De tarde, eu observava as moscas que não faltavam ao seu passeio ao Sol, nos vi­dros virados ao Sul. Chegava-me mais à porta até elas debandarem. Deixavam marcas redondinhas, pequeninas, nos vidros, que lim­pava com os dedos, quando a mãe não estava a olhar.…

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Crónica de Licínia Quitério | Um tipo comum

  De ontem e de hoje – Um tipo comum por Licínia Quitério   Era um tipo comum, bom profissional do seu ofício, dedicadíssimo aos patrões, melhor, fidelíssimo, acérrimo defensor se alguém a eles se referisse com irreverência ou mágoa. Dizia para quem o queria ouvir que gostava mais da empresa do que da sua família. Talvez levado por um copito a mais, num dia em que um patrão desqualificou o seu trabalho, perdeu as estribeiras, zangou-se a sério, avermelhou como pescoço de peru, disse ao patrão o que pensava…

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Crónica de Licínia Quitério | Ela tem medo

  De ontem e de hoje – Ela tem medo por Licínia Quitério   Ela tem medo. Do dia que começou menos mal, mas nunca se sabe como vai acabar. Da noite, porque  não há meio de se ver livre das insónias. Deste Verão quente como não há memória, a trazer a calamidade dos incêndios que nada poupam. Deste Inverno, que assim morno só pode trazer o diabo no ventre, as gripes que o digam, para não falar dessas doenças modernas Ela tem medo. Do mundo, que anda tão perigoso,…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Maiorca

  De ontem e de hoje – Maiorca por Licínia Quitério   Talvez os testemunhos envergonhados de um continente há muito afundado. A meio caminho entre a África e a Europa, as Baleares são um misto destes dois mundos. Nelas se casam a palmeira e a alfarrobeira. O Sol escalda e desidrata coisas e pessoas. O mar é azul e morno e os poentes bruscos e incolores. Ao Verão de Maiorca acorrem gentes do Norte e as praias ficam pejadas de corpos esbeltos e longilíneos coroados de cabeleiras loiras-brancas. Às…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Marinaiça

  De ontem e de hoje – Marinaiça por Licínia Quitério   A Marinaiça Alexandre está agora menos  mal. Era a do meio de três moças. O pai, Manuel Alexandre, morreu com o “saluço”. Naquela altura ainda não sabiam duma erva que se dá a cheirar ao doente e fica curado. Depois a mãe deu-a a uma senhora já com uns anitos que vivia num monte vizinho, que era mesmo dela e que só tinha uma filha já mulher. “Vocemecê podia dar-me uma das suas moças!”. Foi ela, a Marinaiça,…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Dona Rosária

  De ontem e de hoje – A Dona Rosária por Licínia Quitério   Na loja da dona Rosária havia tudo, cabia tudo, nada se limpava, nada se fiava, nada tinha peso certo, nada tinha preço certo. Na montra da loja da dona Rosária havia um amontoado de objectos, grandes, pequenos, médios, de caixas, mais ou menos amolgadas, de moscas mortas de tédio, lá pelo meio. A loja onde reinava, absoluta, a dona Rosária, era um armazém de sacos, de tulhas. No balcão que sobrava dos objectos, dos sacos, das…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Há que resistir

  De ontem e de hoje – Há que resistir por Licínia Quitério – Há que resistir! – Respondia invariavelmente a quem lhe atirava o habitual – Como vai isso?-*-oikk Firmava a bengala no chão, a evidenciar algumas sobras de vitalidade, abria quanto podia os olhos esverdeados, agora enevoados pela poeira do muito tempo vivido, e repetia, com a voz já a quebrar na dentadura que oscilava: – Há que resistir! Se o ouvinte era “da cor”, puxava conversa: – Isto está cada vez pior. E andaram aqueles homens a…

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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Ir a Lisboa

  De ontem e de hoje – Ir a Lisboa por Licínia Quitério Iam a Lisboa visitar as velhas amigas que há muitos anos, tantos quanto somavam três gerações bem contadas, emigraram para a cidade, levadas pelos pais, em busca, como todos os deslocados deste mundo, de melhor fortuna. Moravam numa grande cave que servia de habitação de porteiro, com muitos compartimentos e um longuíssimo corredor. Só menos de metade da casa recebia luz do exterior, através de pequenas janelas basculantes, abertas e fechadas com o auxílio de uma comprida…

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