Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Dona Sara

 

De ontem e de hoje – Dona Sara
por Licínia Quitério

A senhora tem os rituais que os oitenta e tantos anos lhe exigem para poder abrir os dias e pensar, estou só mas estou viva, graças a Deus. Aguenta-a aquele mau génio que os outros referem quando dizem, sempre foi uma peste, e desfiam pecados passados de dona Sara. Sabem lá eles do que falam, de quem falam, só ela sabe de si, de quanto amou, quanto odiou, quanto chorou, quanto lutou para tratar dos velhos lá de casa, nem sempre com bons modos, confessa, velhos são o diabo em figura de gente, da doença do marido, coitado, tão bom, não merecia a malvada da doença que o levou novo, ainda bonito, o homem da sua única paixão. Ela cumpriu a tarefa de fazer crescer e educar os filhos, trabalhos dobrados, como se diz de filhos criados, e eles lá foram às suas vidas, fazer filhos, que já filhos fizeram. Vêm visitá-la, não fazem mais que a sua obrigação, não deixa de declarar dona Sara, no seu modo envergonhado de amar, não vão achá-la piegas, que isso é que ela não suporta.

Ainda aqui está, a velha senhora, a encobrir sorrisos, a tentar endireitar as costas, a subir e a descer a rua, sempre às mesmas horas. O vizinho Saul diz, nem preciso de relógio, a dona Sara é mais certinha que o relógio da torre.

Emagreceu, a dona Sara, ou melhor, encolheu, que é o que acontece aos velhos. O estupor do isolamento está a dar cabo dela. As pernas estão mais presas, às vezes parece que bebeu uns copos, diz num risinho, desacerta a vertical. Por detrás da máscara, a voz mais baça, mais lenta, queixa-se, estar sempre em casa não é para mim, não aguento, preciso de conviver, a continuar assim morro da cura, e volta a rir-se, baixinho. Força, dona Sara, isto vai passar, vá lá ao seu cafezinho, a sua amiga já está à sua espera. Dá um impulso às pernitas, ajeita a máscara, diz, então vou, até logo. Ainda se vira para trás, a acrescentar a sua preocupação com a guerra, a dizer, Deus nos livre daqueles homens malvados, a senhora sabe a quem me refiro.

Graças, quem sabe, ao seu mau feitio, a dona Sara vai vencer mais um dia, sem vírus, com a guerra lá longe. A subir a rua, a descer a rua, às horas certas com que se orienta o vizinho Saul.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


Partilhe o Artigo

Leia também