Crónica de Licínia Quitério | O Curso

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | O Curso

por Licínia Quitério

 

Era chamado O Curso. Ando no Curso. Vou a caminho do Curso.

Assim se falava da casa onde, terminada a escola primária e feito com aprovação o exame de admissão aos liceus, cerca de vinte rapazes e raparigas, em que me incluí, recebiam aulas das matérias dos dois primeiros anos do que se poderia chamar ensino secundário. Foi assim em Mafra, durante a segunda metade da década de quarenta do século passado. Na Vila, outras escolas não havia e quem pudesse proporcionar mais estudos aos filhos, mandava-os para os Liceus em Lisboa, se para tal tivesse condições económicas ou a sorte de ter na capital familiares que os acolhessem. Para os outros, de mais magra bolsa, havia a solução do Curso ali mesmo, ao pé de casa. De notar que os alunos que nesses anos acedia ao secundário eram poucos, pouquíssimos. A grande maioria, terminada a escola, havia de ter à sua espera um trabalho, mais ou menos exigente, dentro ou fora de casa, para ajudar a parca economia da família.

No tal Curso, quando para lá fui havia nove alunos a frequentar o primeiro ano e dez o segundo.

O Curso fora iniciativa e obra de um médico, um professor e um bibliotecário, os únicos mestres que associando-se acrescentavam às suas horas de trabalho profissional a tarefa notável de proporcionarem mais uns anos de aprendizagem aos pequenos que o pudessem e quisessem fazer. Havia que pagar uma mensalidade modesta, mas mesmo assim bastante pesada para os baixos proventos da maioria da população. Pôr um filho a estudar, como se dizia, implicava as mais das vezes afrontar um rol de dificuldades e sacrifícios. Desses Pais e Mães-Coragem alguns conheci e ficaram-me na lembrança.

O Curso instalou-se por arrendamento no andar mais alto, o segundo, de um prédio de habitação. Ali se arrumavam os alunos em duas salas e uma outra destinada aos professores.

O médico ensinava Matemática, o Professor Português e Francês, o Bibliotecário Ciências Naturais e Desenho.

O recreio, assim chamado o tempo de intervalo entre aulas, era passado simplesmente na rua, bem sossegada naquela época de raros automóveis e também de  não muitos passantes. Se chovia, a miudagem não saía e ficava nas escadas, para baixo e para cima, inventando saltos e correrias que muito incomodavam os inquilinos do andar de baixo que bem ralhavam, coitados, pouco podendo fazer.

Não quero deixar de referir que dois dos mestres eram democratas, resistentes que experimentaram as “pensões” do Estado Novo, já que dizer “prisão” era inconveniente nesses tempos de chumbo. O terceiro elemento era salazarista confesso e militante. Acontece que, mau grado as diferenças abismais de convicções, a relação entre eles foi sempre cordial e conduziu a um trabalho eficiente e tranquilo.

Foi há muito tempo, foi, éramos crianças num mundo aflito, bem diferente do de hoje, mas igualmente aflito. A Terra, que sabe de tudo, vai rolando, rolando…

    Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

Partilhe o Artigo

Leia também

One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | O Curso”

  1. Maria Clara Pimdntel

    Não tive exavtamente essa vivência porque, em Évora, existia liceu até ao último ano e, felizmente, a minha irmã e eu pudemos frequentá-lo, ainda que com sacrifício dos nossos pais. Mas sempre era diferente do que ter de ir para fora de casa. Depois mudámo-nos para Lisboa e podíamos prosseguir estudos mnovamente sem ter de sair de casa. Mas, sem ter vivido o que nos conta em directo, conheci bem a situação através de amigos.
    A Licínia tem o dom raríssimo de nos transportar para um espaço e para um tempo que pensávamos ter esquecido. E de conseguir que o revivamos. O encanto sempre eterno d sua Escrita atravessa qualquer obstáculo e devolve.nos memórias.
    ~Clara Pimentel

Comments are closed.