Folhetim | Casa de Hóspedes (1º. Episódio)

[sg_popup id=”24045″ event=”onLoad”][/sg_popup]

FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

CASA DE HÓSPEDES (1º. Episódio)

O prédio era do tempo em que os inquilinos ali ficavam a morar por toda a vida, em andares de muitas e pequenas divisões, com um ou dois quartos interiores, por vezes tristes espaços, de fraquíssima luz e arejamento. Porque o problema da habitação era uma das mais sérias preocupações dos lisboetas das classes menos afortunadas, em muitos andares viviam várias gerações, quando não amigos próximos, numa partilha de espaços, quezílias e amores.

Nem sempre as relações de vizinhança eram pacíficas entre os vários inquilinos do prédio. A lavagem das escadas era motivo de grandes discussões, desde que à porteira, a senhora Perpétua, lhe deu um treco mesmo ali à entrada do cubículo e foi levada para casa de um sobrinho de onde partiu para a terra de ninguém. Outra porteira não voltou a haver e cada inquilino passou a encarregar-se da sua parcela de espaço comum. Semana a um, semana a outro, a coisa estaria certa se não houvesse sempre quem reclamasse que alguém se tinha enganado nas contas e andava a adiantar as semanas, só por embirração, claro está. Não eram má gente, de guardar rancores eternamente. Altercavam por dá cá aquela palha, mas não deixavam de praticar alguma solidariedade em tempos de festa ou de desgraça. Unia-os o ódio ao Albertino do rés-do-chão, dono da loja FLOR DA RUA, de “mercearias finas e produtos derivados”, tal como escarrapachado na tabuleta, presa na perpendicular da parede, entre a porta e a exiguidade da montra. De facto, o Albertino era um ser pouco menos que execrável, encolhido e de cabelo untuoso, nada de brilhantinas, dizia com orgulho, gordura natural. Nos tempos de escassez, especialmente de bacalhau, o vigarista carregava no preço e encharcava-o de água, que a Dona Júlia, da janela da marquise das traseiras, bem via o grande alguidar com o fiel amigo a banhos, no pátio do merceeiro. Das contas nem é bom falar, que sempre se enganava para cima, arredondamentos, desculpava-se, enrolando e desenrolando as mãos, perante os ferozes vocativos e qualificativos das ofendidas. Era um homem que, na sua aparente insignificância, sempre levava a melhor contra todas as mulheres do prédio, graças à sua estratégia de fazer orelhas moucas à consabida berraria.

Em casa da Dona Júlia, na sala de jantar, em lugar de destaque, havia um quadro com flamingos cor-de-rosa, bordados à máquina, sem que se vissem os pés dos bichos, supostamente mergulhados em água. Sempre o marido de Dona Júlia a atenazou porque ali havia defeito, a água não podia ser cor de grão-de-bico, ao que a mulher retorquia, estou fartinha de te dizer que se acabou a linha azul, de seda, cada carrinho um dinheirão, e a minha mãe disse, chega de despesas com o bordado, assim fica muito bem. Explicação dada até à próxima embirração do Quim Zé que Deus tem, quase sempre ao fim da tarde de Domingo, chegado da patuscada com os amigos lá no clube. Afora estas e outras demonstrações de mau feitio, quem dera a Dona Júlia que ele não tivesse partido tão cedo, a malvada da doença a roê-lo por dentro, a tirar-lhe as forças, cansado de médicos e medicações, as esperanças a esmorecerem, os ossos a salientarem-se, a tristeza a afundá-lo no cadeirão, a dizer aos amigos que o visitavam, isto não é viver, estou farto, só me custa deixá-la, coitadita, boa mulher, boa enfermeira, mais do que eu mereço.

(continua)

Leia também