Dormir com fantasmas Por Alice Vieira Quando os meus netos eram pequenos viviam em Inglaterra, na cidade de Leicester (a mais nova até nasceu lá, o que a deixa muito orgulhosa…). Um dia a minha neta mais velha tinha uma visita de estudo e eu fui com ela. Uma visita perfeitamente normal, daquelas que a escola fazia quase todas as semanas. “E se tivéssemos ligado antes, a marcar, até lá podíamos ter dormido”—oiço a minha neta. Arrebito a orelha, de que é que ela estava a falar?, dormido onde?…
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Crónica de Mário de Sousa | Não batas com a porta! Disse…
Crónica de Mário de Sousa Não batas com a porta! Disse… Não batas com a porta! Disse…[i] Mas ela já ia no seu caminho desaustinado, terminando com estrondo ao embater na ombreira. E eu ficava empolgado com o ruído e dentro de mim, sentia um orgulho enorme, um poder indescritível por ser capaz de gerar aquele pandemónio. A minha mãe encolhia os ombros resignada, a minha avó ‘resmoneava’ com diversas intensidades de ‘Hum, Hum’ e a tia Bernarda abanava a cabeça compondo o carrapito, como se o estrondo a tivesse…
Ler maisCrónica de Jorge C Ferreira | Os acomodados
Os acomodados por Jorge C Ferreira Há quem se acomode. Quem arranje um lugarzinho. Quem se vá calando, falando. E, no entanto, tanta coisa para falar a sério. Tanta coisa para reclamar. E tanta gente calada. Fico arrepiado ao lembrar-me de quem, antigamente, dizia: a minha política é o trabalho. Gente que sabia que a polícia levava presos os seus vizinhos. Está um Major General a falar neste momento na televisão e já disse pertinente um ror de vezes. Fala-se de mísseis e contra mísseis. Da guerra e…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | A pergunta
De ontem e de hoje – A pergunta por Licínia Quitério A cozinha tinha uma porta que dava para o quintal, e na porta havia um postigo, um quadro de quatro vidros. Naquele tempo, havia muitas moscas que poisavam e caminhavam nos vidros, vagarosas. De tarde, eu observava as moscas que não faltavam ao seu passeio ao Sol, nos vidros virados ao Sul. Chegava-me mais à porta até elas debandarem. Deixavam marcas redondinhas, pequeninas, nos vidros, que limpava com os dedos, quando a mãe não estava a olhar.…
Ler maisCrónica de Jorge C Ferreira | Esperar
Esperar por Jorge C Ferreira São tantas as vezes que desembrulhamos a vida e um sem fim de medos nos vem com pele agarrada. O pânico tão difícil de controlar. O pensar que não somos capazes de ultrapassar o próximo desafio. As rotações da mente em ritmo acelerado. O corpo cada vez mais inerte. Um sofá-cama que cheira a desastre. Uma vida que sabe ao fim de tudo. A ajuda que tanto necessitamos. A mão que queremos ver estendida. Respirar fundo. Ir ao mais profundo de nós. Ganhar…
Ler maisCrónica de Alice Vieira | A santa da família
A santa da família Por Alice Vieira Toda a família sabia que a tia Mafalda era santa. De resto, tinha tudo para ser santa: era muito feia, muito boazinha, e muito infeliz, porque o tio César lhe dava tareias de meia-noite. A tia Mafalda vivia numa rua muito feia de um bairro muito velho, num prédio de escadas de madeira a cheirar a gatos e peixe frito, numa casa com um grande corredor, muitos quartos sem janelas, e com um estranho perfume a incenso. Íamos muito pouco a casa…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | História de N’Nori
Crónica de Mário de Sousa História de N’Nori Noite dentro, nuvens negras e acasteladas rugiam de zanga, desfazendo a escuridão com relâmpagos sucessivos. Na tabanca, as torrentes de água desabavam nos telhados de colmo, corriam em pequenos rios que desaguando no chão de terra batida provocavam pequenas crateras esparrinhando barro vermelho para o ar. Toda a gente se tinha refugiado nas casas de adobe e colmo e o grande fugu na bantabá resfolegava os últimos suspiros, submerso naquela água que o céu despejava, certamente insatisfeito com os homens que ali…
Ler maisCrónica de Jorge C Ferreira | A sombra dos lugares
A sombra dos lugares por Jorge C Ferreira Nas voltas da vida encontramos sítios que ficam a viver em nós para sempre. São imagens, sombras, rostos, lábios, corpos inteiros que teimam a estar connosco. Uma rua, um rio, um mar, uma ilha, uns seios de mulher e uma criança com fome. Caminhar. Um caminho entre tremendas arribas. Rochedos que parecem querer falar. De repente um tesouro. O nunca esperado. Há quem fique espantado. Há quem ache que é pouco para tão grande caminho. Há montes que se mostram…
Ler maisCrónica de Alexandre Honrado – Nos tempos em que usávamos máscara
Crónica de Alexandre Honrado Nos tempos em que usávamos máscara Escrevi este texto andávamos todos de máscara e essa realidade sublime e violenta parece-me agora distante, mesmo que de quando em vê a tenha de colocar no rosto para esta ou aquela função. Decido revisitar o texto – e esses longos meses de tensão e violência. Cito-me, apenas em parte, mas creio que perceberão porque o faço mesmo assim. O texto completo foi publicado no livro PERSONNA PANDÉMICA Investigação sobre a noção de identidade no pós Covid-19. A…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Um tipo comum
De ontem e de hoje – Um tipo comum por Licínia Quitério Era um tipo comum, bom profissional do seu ofício, dedicadíssimo aos patrões, melhor, fidelíssimo, acérrimo defensor se alguém a eles se referisse com irreverência ou mágoa. Dizia para quem o queria ouvir que gostava mais da empresa do que da sua família. Talvez levado por um copito a mais, num dia em que um patrão desqualificou o seu trabalho, perdeu as estribeiras, zangou-se a sério, avermelhou como pescoço de peru, disse ao patrão o que pensava…
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