Crónica de Alexandre Honrado – Há coisas do diabo. Há

Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
Há coisas do diabo. Há

 

À mesa do café – e repare-se como hoje esta frase é quase memória, coisa de museu, à mesa do café entre fragmentos de frases – do tipo “a Deolinda acabou com o Nuno”, “o que achas desta sombra de olhos”, “viste ontem aquilo?”, “Sete a zero, pá! E não jogaram nada!” –, ali ao lado, um par de velhotes conversa animadamente, e um deles diz, enfático: há coisas do diabo!

Porque escrevo estas crónicas e outras, porque dou aulas de Ideias Religiosas, entre outras, a alusão a uma figura de referência captou-me a atenção, estimulou-me neurónios, veio parar à prosa. Será que há mesmo?

Mergulho na reflexão e o pobre demo parece-me, como a mesa do café, um hábito de outrora. É que ultrapassado por uns e outros, o demónio ficou no solitário e amargurado num recanto da mitologia, numa vasta galeria que incluiu Zeus ou Artemisa, Apolo ou Marte, Cronos ou Medeia, Seth (deus egípcio da violência) ou Kali, a deusa hindu que por vezes dava para o torto

Só na letra S dos meus apontamentos, a coisa é infinita: “Saarecai”: demónio menor que habita os buracos da casa. “Sabazios”: demónio frígio, identificado com Dyonisus, adorado como serpente. “Sardon”: conselheiro do Inferno, sacrificando as criancinhas nos Sabás (“Sabbath” – sim, rituais satânicos).

“Sammael” ou “Samael” (hebreu) “Veneno de Deus”. Príncipe dos demónios, líder dos anjos que foram expulsos do céu, chefe das forças de Sitra Achra e marido de Lilith. Samael o que tem pele escura e chifres. É identificado com Satã e reconhecemos-lhe a inclinação para o mal; é o principal acusador de Israel, no céu, onde se lhe opõe Miguel, o anjo guardião de Israel. Foi Samael quem enviou a serpente para seduzir Eva no jardim do Éden. É ativo à noite e tenta os homens ao pecado. Quando pecam, os homens aumentam o poder de Samael e permitem-lhe ganhar controlo temporário sobre tudo, trazendo calamidade ao mundo. Como simboliza tudo o que é mau e impuro, o seu nome, que significa “veneno de Deus”, é evitado, e a ele se refere eufemisticamente ou de forma abreviada. A tradição cabalística associa-o ao Leviathan. No Shabat e nas festas, no entanto, não tem poder sobre o mundo (o que explica muita coisa).

Há ainda  “Samnu”: demónio da Ásia Central. E Satã: (hebreu) adversário, opositor, acusador. (Pode ser visto em livros antigos e registos mais ou menos etnográficos).

Como diz um amigo meu, até o champanhe verdadeiro e estupidamente caro tem mais saída. O pobre diabo! Pura e simplesmente, já não se aplica ao mundo das impressões sensoriais e aos sentimentos que inundam hoje a humanidade. Nos atentados na Turquia, no tiroteio junto ao Capitólio, em Washington, nos Estados Unidos, mas em Atocha, nas Torres Gémeas, na maratona de Boston, em Paris (Charlie Hebdo, Bataclan…), como no Níger, no Chade, na Líbia, na Síria, no Paquistão, na Bósnia, no Afeganistão, na Coreia do Norte, nas execuções sumárias da China, no corredor da morte americano ou em Guantanamo, na Nigéria, em Angola, no Burundi, nas Comores, na Etiópia, no Uganda, na Tanzânia, no Congo, no Sudão, na África do Sul, na Costa do Marfim, no México, na Venezuela, na Indonésia, na Índia… Dói-me a mão de escrever a lista da geografia dos horrores humanos, lista feita ao acaso, que, aliás, sito de cor depois de ler há dias as taxas de homicídio por ano mais recente de acordo com o UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime).

Sem o Diabo, não havia na religião cristã, o inimigo, o contraditório, o oposto ao mal – contra o bem, seu eterno inimigo.

Disse Jesus a Pedro: – “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno (os seres e as paixões) não prevalecerão contra ela” (Mateus XVI,18). Ora nesta frase há muito que estudar. Se as portas do inferno (domínio do diabo) são os seres e as paixões, o que resta do lado oposto: os não seres e os desapaixonados? Uma contradição que merece aprofundamento.

Diabo (do latim diabolus, por sua vez do grego διάβολος, transl. diábolos, “caluniador”, ou “acusador”) é o título mais comum atribuído à entidade sobrenatural maligna da tradição cristã. É tratado como a representação do mal, na sua forma original de um anjo querubim, responsável pela guarda celestial, que foi expulso dos Céus por ter criado uma rebelião de anjos contra Deus com o intuito de tomar-lhe o trono. (Nota: céus. Sempre plural).

Muitas são as tentativas de reproduzi-lo. A mais popular impõe-lhe uma cor vermelha, feições humanas, com chifres, rabo pontiagudo e um tridente na mão, para remeter a um cetro, símbolo de poder, o bastão que designava a autoridade real.

Outra forma também comum é a de um ser metade humano, metade bode, com o pentagrama invertido inscrito no corpo (por exemplo, na imagem de Baphomet, divindade supostamente adorada pelos Templários e, posteriormente, incorporado a tradições místicas ocultas desiguais).

Para combater o anjo do mal, foi criada a figura do Exorcista (do latim Exorcista, “o que expulsa espíritos maus” e por sua vez do grego Exorkismos, “expulsão”) que na Igreja Católica, é interpretado por um sacerdote a quem foi dado, por nomeação do Bispo, o poder de celebrar o Ritual (do Exorcismo) que tem como função expulsar o demónio, libertando as pessoas que estejam (alegadamente) possuídas. Exorcista era também uma das ordens menores da Igreja Católica a quem competia auxiliar o sacerdote na função de expulsar os demónios, por meio de orações instituídas pela Igreja.

O exorcista oficial de Roma é o padre Gabriele Amorth. Foi o professor do exorcista português Duarte Sousa Lara, que estudou Teologia na Universidade de Santa Croce, da Opus Dei, e que até há pouco tempo atendia o público – os possuídos que o procuravam – numa discreta dependência de Lamego. (De acordo com os registos do ano passado, o padre Sousa Lara atendia, então, “numa casa nas traseiras do Santuário de Lamego, mais de 200 possessões graves”).

Tal como não se conhecem aparições a membros da elite cultural, também os possuídos têm em comum a falta de cultura e a modéstia das suas origens sociais, económicas e culturais.

Parece que milagres e atos demoníacos escolhem societariamente, preferem públicos-alvo bem determinados, e não fazem parte das grandes estatísticas do mundo.

O diabo perdeu terreno e protagonismo e foi, infelizmente, substituído pelo homem, que o ultrapassou em maldade – Hitler, Estaline, Pinochet, Mussolini, Franco, Salazar, os Bush… – e assinou os grandes genocídios – das Américas, graças a portugueses e espanhóis, ao Iucatão, a Timor passando por Dzungar, ou pelo Ruanda, sem esquecer o que se passou na Europa do século XX ou em África ou na Arménia…

Dói-me a mão e as ideias, e voltarei ao tema noutro dia. E se virem o tal diabo digam-lhe que perdeu o protagonismo: há seres humanos, mulheres e homens, que foram aonde ele nunca chegará.

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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