Crónica dos dias soltos
Mudar de casa, mudar de rua, mudar de mar, mudar de vida. Outros os amigos, outro o dia a dia. Alguma roupa também muda. Tenho roupa espalhada por alguns sítios. Marcas que vou deixando. Até os animais mudam. O gato aqui é de porcelana.
A Isaurinda está agora por perto, uma vigilância constante. Uma figura sempre presente neste meu vai e vem a que chama doença. Mal vê as malas começa a abanar a cabeça. O pano, na mão, mais parece um lenço de acenar. Daqueles com que, mães e namoradas, diziam adeus durante o malvado tempo da guerra colonial, aos muitos soldados que não voltavam. Por vezes choro quando penso nisto. Lembro-me dos amigos que perdi. Abraços e beijos que me faltam.
Chegar e sentir os outros dias. Os dias a que chamo soltos. Dias que me fogem, que se evadem. Dias que deixam de ser apenas espaços de tempo. Dias que não comando. Os horários a que me imponho e alguns que me impõe. Dias com vida própria. Dias que não são só meus.
No reino, não sinto os dias. Não tenho obrigações. Um texto por dia, a crónica das segundas para o jornal. Comer quando dá jeito. Quando calha. O outro mar a provocar a minha inércia. São outros, os meninos, que se preocupam comigo quando não apareço.
Tenho sentido falta de Bristol, da minha rica sobrinha que está já uma mulher. Abraça-me e beija-me como lhe ensinei. Um abraço só é abraço quando é apertado. Quando os corpos aquecem. Um beijo só é beijo quando os lábios se sentem. Um sabor que fica na pele.
Já estive com todas as minhas crianças daqui. Já os abracei e beijei. Uma alegria que não dispenso. Podem não acreditar mas estes reencontros comovem-me. Por vezes acho que mudo de lugar e viajo só para sentir estes momentos. Para, assim, abanar a vida e lhe dar uma razão de ser. As minhas eternas crianças. Os eternos beijos. As preocupações que nunca morrerão.
Continuar com os tais dias de que vos dei nota. Mudar de dias. Mudar o sentido do tempo. Ir ver o sol da meia-noite. Aquele sol que nunca se chega a pôr. Mudar de horas e até de dia e não querer saber do tempo. Deixar que o tempo nos percorra. Não importar o sítio onde acordamos. Porque viajar é sempre uma mudança. Chegar ao fim do mundo e encontrar outro mundo.
As casas de toda a vida. Aquelas onde já vivi, onde vivo, onde espero viver. Não sei quantas mais casas vou conhecer. Não sei quantas mais crónicas vos vou escrever. Não sei quantos mais textos vou parir. Tento que as casas onde vivo tenham vida. Sinais que não nos deixam esquecer o que fomos e somos. Carrego comigo alguns sinais de mim. Objectos que sempre me acompanham. Vidas da minha vida. Suores que não dispenso. Lágrimas que me acompanham.
Os dias soltos. Os dias errantes. O caminhar sem destino. Uns braços com corpo. Um sorriso que nos anuncia a alegria. As ruas que me unem. Verdades que fazemos por merecer. Caminhos percorridos e a percorrer. O quente fim do dia. O dormir, o sonhar, a espera, e o acordar. Acontece-me, por vezes, quando acordo, necessitar de um tempo para saber onde estou, que caminho vou percorrer. Gosto destas incertezas. Deste estar e não estar. Gosto dos dias sem rumo.
«Já estou a ver, que não tarda, estás a fazer as malas de novo!»
Fala de Isaurinda. Fala desafiante.
«Olha, não te sei responder. Sabes que por vezes somos desafiados por coisas superiores a nós.»
Respondo.
«Tretas! Tu continuas é um vadio. Nem com a idade te pões fino!»
De novo Isaurinda e vai. O pano na mão.
Jorge C Ferreira Nov/2017(145)
Uma crónica a falar ao sentimento, à liberdade! É tão bom podermos fazer o que apetece, mesmo sabendo que Uma isaurinda nos diga que estamos loucos! A idade tem as suas vantagens!!
será que se pode chamar doença? mania compulsiva de saltitar de um lado para o outro. ?eu sofro desse gosto também. Paro sempre que vejo uma agência de viagens. Vejo todos os cartazes…e arrancava já a seguir a escrever para ti e a desejar-te: Boa Viagem!
Obrigado Fernanda. Já somos dois. Vamo–nos passar a escrever de cada destino. Abraço
Obrigado Maria Alcina. As vantagens e as desvantagens da idade. Devemos aproveitar o que podemos ainda fazer. Sermos uns loucos saudáveis. Abraço
Gostei tanto Jorge….eu não gosto nada de despedidas, mas tal como o Jorge gosto do abraço do regresso!
Depois….ainda bem que o Jorge é um”vadio”….porque isso enriquece as suas crónicas!
Obrigada por partilhar connosco tanta coisa bonita!
Obrigado Raquel. Mudar de lugar é uma aragem nova que nos liberta. Encontrar outras vidas, outros afectos. Abraço
Gostei muito da crónica e do nome que lhe deste – “Dias soltos”. Acho que diz muito de ti… e gostei da “teoria” que tenta justificar as tuas sucessivas partidas (e chegadas..).
Para além da paixão pelo Mar e do desejo de conheceres o mundo, esses afectos que recebes em cada chegada são um prazer de que não dispensas. E têm, certamente, um sabor diferente que teriam se não fosses um viajante. Esses abraços apertados, esses beijos dados com os lábios… Essa intensidade comovente dos reencontros não existiria se estivesses rodeado sempre das mesmas pessoas.
As viagens, para além de muitos outros benefícios, estimulam a parte melhor e mais terna da saudade.
E que bom deve ser teres sempre quem te acompanhe nessas viagens sucessivas!
Obrigado Maria. Viajar só faz sentido, se formos em busca do novo, do belo, dos afectos. Abraço.
Que bom o partir,melhor o chegar
Tem um outro sabor
Não perde as malas de vista
A necessidade de estar com outros amigos
Viver sem horas
Uma vida errante
Sempre o cheiro a liberdade
Lindo texto
Obrigada,Jorge!!!
Obrigado Maria Helena. O tempo é pouco. Temos de o aproveitar. Abraço
Muito bom! Bonito. Quanta sensibilidade
Obrigado Isabel. Obrigado por me ler.
Gosto,porque gosto, dessa tua maneira de estar e viver.Grande companheira essa que te acompanha nesses sonhos de ida e vinda.Só assim faz sentido ficar e usufruir essa emoção de viajante.Sem comparação nem plágio,sou como a Isaurinda. Outra vez?
Beijo meu querido amigo
Obrigado Célia. A vontade imensa de partir. Abraço
Gostei muito obrigada . Faz-me pensar viajar sem destno sem horas sem lugar. Abraço
Obrigado Isabel. Que gratificante é saber que o qu escrevemos tem algum impacto positivo. Abraço.
Linda esta crónica dos “dias soltos”.
Que bom partir qual pássaro errante numa procura constante do Belo e onde o Amor está sempre presente, os abraços apertados e os beijos quentes.
Não vai demorar a “zarpar”! Nós continuaremos aqui a acompanhá-lo. Um abraço.
Obrigado Idalina. Sempre bom sentir a ternura. Ter braços à nossa espera. Abraço
Emocionei-me com a sua crónica! Faltam-me as palavras para expressar o quanto gosto da sua escrita tão descritiva. O sentir as gentes, o viajar , a descoberta de novas culturas e de novas amizades. Sentir os afectos , a ternura de antigos amigos e de novos amigos . A doce e terna Isaurinda, avizinhando nova partida de seu “menino”. Uma preocupação constante ao vê-lo de malas feitas à porta. Obrigada pela partilha desta deliciosa crónica. Seja feliz sempre! Abraço.
Obrigado Ana. Sim, viajar é isso tudo e o que ainda não descobrimos. Há sítios para onde não viajo vou estar viver outra vida. Que bom ter gostado. Abraço.
Já não tenho forças para zarpar, agora faço -o sem sair do lugarejo, mas é possível descobr
r muito, basta querer, surpresas não faltam, basta olhar, olhar muito.
Obrigado Amélia. Essa é a maneira mais intensa de viajar. Fazê-lo sem sair das paredes de um quarto. Lembrou-me Pessoa. Abraço
Caminha , Jorge. Faz o que te torna feliz.
Um grande abraço e não te esqueças nunca de quem fica.
Obrigado Manuela. Nunca esqueço. Vão sempre comigo. São uma permanente preocupação. Abraço
Onde quer que estejas, para onde quer que vás, tens abraços apertados e beijos que ficam. És do mundo e o mundo precisa de ti. Muitos caminhos tens ainda por percorrer. Mares por desbravar. Ruas por encontrar. E sorrisos à tua espera.
O pano da Isaurinda voltará a secar as lágrimas de uma saudade que se avizinha. Ela e as tuas crianças conhecem-te bem e o Sol da meia-noite brilha. Brilha.
Abraço-te muito. Apertado.
Obrigado Cristina. Procurar sempre a ternura. Descobrir o novo. Abraçar a vida. Porque a vida vale a pena. Abraço.
Gostei muito do texto, mas como a Isaurinda fico preocupada com a tua ” inquietação”. O que me sossega é saber que tens tantos amigos espalhados por todos os lugares que amas, E, rapidamente crias amigos. Sei, como eu, que gostas de abraços apertados. Os abraços têm de ser ” do coração “, os beijos a sentir os lábios na pele.
Vais embora, novamente, porque não és ” pássaro de gaiola “. Mas levas contigo muitos de nós a acompanhar-te. Eu, sempre. ” Dias soltos, dias errantes e eu, ” taralhouca” a acordar e não saber onde estou. Havia de ser lindo.
Beijinhos para a Isaurinda e, passo por ti a despedir-me. Beijinhos <3 <3
Obrigado Ivone. Estar sempre a pensar no próximo destino. Desejos que nos chamam, ternuras que deixamos. A errância. Abraço
Bonita crónica, “dias soltos”. Anseio esse tempo de soltura. Eu a comandar o meu tempo. Penso que já estive mais longe…
Bristol o espera. Não guarde a mala, mude apenas a roupa para mais quente.
O Natal por lá. Está à porta. Coitada da Isaurinda!
Espero passar o meu com neve, no calor de abraços saudosos.
Belo articulado, o da Crónica. Parabéns.
Obrigado Fernanda. Nunca sei o que me bai chamar. Que saudades me vão dizer o destino. Abraço
Caminhar sem destino! Gostei muito da sua crónica. Um grande abraço e obrigada.
Obrigado Esmeralda. Que bom que gostou. Que bom que leu e comentou. Vamos caminhar. Abraço
Esses dias errantes, sem obrigações nem horas, são a minha ambição.
Zarpar, por mar, terra ou ar e descobrir ou revisitar. Sentir gentes diferentes, alimentar a curiosidade, ir sem rumo…
Para mim, essa é a liberdade. Que é algo muito próximo à felicidade.
Obrigado Sofia. É nessa descoberta que nos descobrimos. Abraço