Crónicas de Jorge C Ferreira | Coisas Antigas

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Coisas Antigas

Este tempo de pensar. O aconchego de uma vida. Um livro que nos emociona. As dores da escrita. Uma vela e um ritual muito antigo. Uma escrivaninha e a gaveta de todos os segredos. Um anjo, muito antigo, com a mão partida. Um anjo louro. Um anjo que a minha Mãe me deixou.

Um café que não é habitual. Quatro amigos à conversa. As viagens e os difíceis caminhos. Tudo o que não se espera e acontece. O amigo que tem de voltar para o lar. O beijo de despedida. Alguma comoção. Já fomos todos tão novos!

Esquecer a comida. Cuidar da conversa. Cuidar do outro. Lembrar para esquecer. Combinar a próxima vez. Onde estaremos? Essa interrogação que caminha connosco. Os corpos que tivemos. Tudo o que agarrámos. Quem nos agarrou. Os cortejos de vaidades perdidas. As ruas engalanadas. Um tapete persa e um voo inesquecível.

Passar a noite a ver fotos de outros tempos. Sentir a sorte que temos em andar por aqui. Tantos mortos naquelas fotos. Lindas criaturas que se foram embora. Que nos abandonaram. Tanta felicidade estampada a cores e a preto e branco. Tanta moda. Tanta vida.

As praias desertas, os corpos completamente despidos. Coisas que foram acabando. As fogueiras na praia e a conversa noite adentro. Combinar a próxima revolução. O sal a temperar a conversa. Um barco com uma lanterna a furar a noite. Ir até à ilha. Dormir do outro lado do mundo.

Os casamentos falhados e os que resistiram. Muita gente que a guerra levou para outras terras. As fotos que nunca mais acabam. Que fazer com tudo isto? Ir buscar mais fotos ao sótão de todos os segredos e lembrar mais coisas já perdidas? Talvez.

Não podemos viver disto. Temos de viver do futuro. Temos de pensar no que fazer. Onde queremos chegar. Temos de fazer de cada foto antiga um sonho para o futuro. Agarrar a vida. Passar pelo tempo em que estamos num caminhar suave e doce. Beijar quem gostamos. Abraçar, abraçar muito.

Não sei o que me trará o próximo caixote de velharias. Sei que o vou degustar e aprender a viver com ele sem nostalgias. Sei que me vou rir das calças à boca de sino, que vou admirar as pernas que as mini saias deixam ver. Apreciar algumas mundividências. Alguns lugares esquecidos e as viagens que foram relâmpagos amorosos.

Loucuras sem cadeados. Fugir de tudo e de todos. Tentar encontrar o paraíso num lugar por inventar. Tudo isto num caixote de cartão castanho. Um caixote sem cinta. Um caixote aberto para o sentimento.

Ainda faltam muitos caixotes, envelopes, baús, arcas. Recados e ternuras. Cartas e selos antigos. A vida a andar ao contrário. Um transporte difícil de arranjar.

Sei que vou chegar cansado ao fim de todo este relembrar. Sei que vou sentir a cama mais doce. Sei que vou ver estrelas e luzes. Sei dos braços que me vão abraçar. Sei quem vou enlaçar. Sei que vou adormecer de forma calma e que, se acordar, vou amar o futuro.

«Olha que tu tens aí fotos que devias ter vergonha de mostrar. Que pouca vergonha!»

Voz de Isaurinda.

«Foram outros tempos, a ânsia da liberdade toda. Coisas normais. Diria mesmo, bonitas.»

Respondo.

«Tá bem, fica com a tua, que eu fico com a minha.»

Diz Isaurinda e vai, o pano na mão.

Jorge C Ferreira Setembro/2018(180)

 

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26 Thoughts to “Crónicas de Jorge C Ferreira | Coisas Antigas”

  1. Isabel Pires

    Recordar é viver… Um abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Nunca ficar só no passado. Um abraço

  2. Branca Maria Ruas

    Por vezes há que fazer um esforço para evitar que a nostalgia nos impeça de ter esperança no futuro.
    Por vezes as memórias têm tanta força que nos embaciam o olhar.
    Por vezes faz-nos falta ter a quem dar a mão e apaziguar as lembranças.
    Por vezes há dias assim…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Nunca cair no lamento. Amar tudo e todos os tempos. Abraço

  3. maria fernanda da cunha morais aires gonçalves

    As fotos que têm os dias contados. enquanto não as deitam para a fogueira vamos ao baú e lá estão. dormem em paz. contam origens de famílias. Passeios, viagens, amigos em almoçaradas e os casamentos, ai os casamentos! Tenho um álbum só com noivos, quase todos divorciados. Alguns fizeram os pais gastar fortunas nas festas e mais não digo. Ah! como eras tão bonita! como é que engordaste? como te secou a pele? os teus olhos tinham a cor do sol, eram amarelos. agora não têm cor. Como tremes. Também te treme a perna? Ninguém nos perdoa o envelhecimento. Fechei-os todos à chave. Só eu sei onde a guardo.Só eu vejo e mato saudades das minhas memórias. Alguns retratos faço-os saltar para os meus braços e prego-lhes um beijo como se fossem santinhos. Já não imprimo mais fotos. Estão todas no computador. Para apagar é só carregar numa tecla…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Como é belo o teu texto! Quanto às fotos nada como as impressas. Deixam-se abraçar de outra maneira. Abraço

  4. Ana Cardoso

    Todos nós temos as nossas caixinhas de memórias, e como gostamos do seu sabor… saber transmitir até onde elas nos levam, é que não é para todos ! maravilhoso como este ESCRITOR o fêz, na perfeição !!!——————————————- E como nós gostamos de abrir essas caixinhas e partilhar com uma daquelas amigas…” Dizer-lhe: recordas-te, dos Bailes no salão dos Bombeiros, do conjunto azul, do conjunto de Figueira Padeiro de Alpiarça.? … de comprarmos na Farmácia … goma para que os saiotes fizessem os vestidos bonitos ? !!! e quando ia-mos ao Cinema no Inverno e saia-mos de lá geladas… e quando tinha-mos ataques de riso, nos locais menos próprios, tais como: na Igreja, num funeral, porque alguém tinha as meias rotas… !!! E os nossos afilhados de Guerra… partilhava-mos a leitura dos aerogramas… lembras-te ? Hó minha amiga… não tinha-mos telemóveis nem computadores, mas era-mos felizes… E essa minha amiga diz-me:” tenho caixinhas todas iguais onde ainda guardo tudo… “, Eu não, respondo-lhe, são de cores variadas, só assim poderia ser… porque os momentos vividos… nenhum foi igual !!!! Desta forma, quando nos encontra-mos, e aos poucos, lá vamos abrindo as nossas caixinhas … !!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ana. As diferentes cores da vida. As caixas de memória. Grato pelo seu comentário. Abraço

  5. Herminia Lopes

    É bom não ter tempo….
    Remexer dá trabalho.
    O ontem encarrega-se de pressionar:
    “Eu estou aqui” e está
    .. é a sombra do hoje!.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Hermínia. Jogar com o tempo que o tempo nos dá. Este jogo por vezes brutal. Abraço.

  6. Idalina Pereira

    Que crónica espetacular. Nela há afetos, saudades, passado e libetdade …
    Adoro ver fotos antigas e saber das estórias que algumas encerram.
    O melhor de tudo, ( a cereja no topo do bolo) o modo como o Jorge nos “conta” tudo isto. Brilhante. Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Idalina. Só lhe posso responder que estou muito grato pelo seu comentário. Abraço.

  7. Madalena Pereira

    Tanta beleza na escrita deste texto! Obrigada, meu amigo por todas estas memórias. Um beijinho

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Madalena. Grato por me ler e comentar. Abraço

  8. Teles Ivone Teles

    Tantas recordações quando, num impulso, vou à gaveta das fotografias. O que vieste lembrar, querido amigo. Que eu própria pareço uma gaveta de recordações. Sempre gostei de relembrar estórias passadas que, em conjunto, fazem a minha própria história.E olho o presente e até me parece impossível o tanto que já vivi. Como rapariga e mulher que fui, as minhas estórias parecem infantis. Nasci no ano da “2ª G.Guerra, mas a ” abertura ” social chegou bem mais tarde do que em tantos outros países. Viviam-se anos de fascismo, era um pais fechado, como fechados eram os limites impostos. Leio-te e é com a tua escrita, tão mágica, que vivo situações, visito lugares, atravesso mares, voo com as aves. És o meu amigo/ irmão e está quase tudo dito. Não quero lembrar agora as perdas de tantos amigos. Estou numa idade terrível em que se vão.
    Desculpa, querido Jorge, estes desabafos. Tu trouxeste-nos muita beleza e eu coloco saudades guardadas. Nunca nos deixes de transmitir as magias da vida, nesse teu modo tão teu de o fazeres.Sempre te aguardamos. Diz à Isaurinda que és um jovem contador de vidas lindas, porque verdadeiras. Beijinhos amigos, irmão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Só para ler os teus comentários vale a pena escrever. Tens sempre as emoções à flor da pele. Obrigado por seres quem és. Abraço.

  9. Maria da Conceição Martins

    Tão bonito o seu texto Jorge. Obrigada mais uma vez.Abraço amigo

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria da Conceição. Tão gratificante ler o seu comentário. Abraço.

  10. Cristina Ferreira

    Querido Jorge, todo este texto é ternura. A forma como nos descreves memórias, recordações é pura poesia. Tão doce, tão bonita.
    Adoro ver fotografias antigas. Faço-o com frequência. Tenho por hábito dizer que recordar é viver. Mas só recordar, é morrer também. Pois tal como tu dizes : – “Não podemos viver disto. Temos de viver do futuro. (…) Agarrar a vida. (…) ”
    Jorge, querido amigo, “coisas antigas” que nos oferecem uma mensagem de Luz, de esperança, no acreditar no amanhã.
    Ahhhh Isaurinda, nada disso, nada de pouca vergonha, mas beleza, muita beleza – ” A ânsia da liberdade toda” .
    Beijo e abraço-vos

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Sempre generosa. Os comentários vivos. Viva a Liberdade. Abraço.

  11. Regina Conde

    Os amigos à conversa o aconchego acontece. Cada vez lembram coisas mais antigas. A sede de liberdade. inventada a vontade no possível e nos parece agora tão distante. Sabes, também invento a Isaurinda a olhar fotos com ausência de roupa e outras coisas mais. Delicioso texto. Abraço Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Uma mesa de amigos à conversa é uma vida reinventada. Uma maravilha que devemos preservar. Abraço.

  12. Esmeralda Machado

    Uma crónica maravilhosa! Remexer no passado, que todos temos, dá-nos uma certa angústia e nostalgia.
    Temos de fazer de cada foto antiga. um sonho para o futuro.
    Temos de viver o presente com paz
    Um grande abraço querido amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Esmeralda. As fotos, as vidas, as histórias. Uma amálgama de coisas surpreendente. Abraço.

  13. Célia M Cavaco

    Dou por mim a pensar ao ler esta crónica, tudo é tão rico de memórias e recordações de uns e outros que paro, escuto-me: Que posso eu contar se o meu tempo é ainda início onde as raízes,cheiros e factos não são nem princípio de qualquer página.
    Que bom meu amigo,cada recordação,cada memória contada é um prazer que nos enche a alma.Até as passagens menos positivas tem a sua época gloriosa para se fazer era uma vez,ou foi foi assim que aconteceu. Abraço meu muito amigo de muitos afectos.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Célia. Contamos histórias. Somos dos afectos. Somos do Ser. Grato por Seres e estares aqui. Abraço.

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