Crónica de Licínia Quitério | Um laço vermelho

OLYMPIA

De ontem e de hoje – Um laço vermelho

por Licínia Quitério

 

Vinha com vontade de falar, de ter quem lhe ouvisse a fala, que não a interrompesse, e sobretudo não desse opiniões sobre o que ia falando. Foi o que eu entendi ao vê-la chegar ao café, puxar a cadeira e sentar-se, o corpo paralelo ao tampo da mesa quadrada. Não nos conhecíamos a não ser daquele lugar  de gente rotineira, de vizinhanças vagamente cúmplices, de histórias de bairro sem grandes rasgos, de um ou outro negócio clandestino, de um ou outro caso de algum sexo e pouco amor.  Ela deve ter gostado do meu vago bom-dia, do silêncio que fiz seguir, e começou:

  • Aqui onde me vê, já dei à vida muitos anos. A vida, essa,  deu-me do melhor e do pior, como costumo dizer. A outra, aquela de quem não gosto de dizer o nome, já me levou companheiros e companheiras.

Fez um brevíssimo intervalo para logo explicar, creio que a ela própria:

  • Não, não me dá jeito dizer camaradas.

Continuou:

  • Conforme eu ia dizendo, também levou quem não me fez falta alguma. Não sou de impostorices, há cada estupor que não merece o ar que respira. Você percebe que os estupores têm nomes, mas desta boca não os vai ouvir. Nomes só têm as pessoas boas, como o A., a G., o J.M., a M.E.. Alguns já cá não estão.

Suspirou, ou bocejou, não percebi bem. E prosseguiu, as palavras em rajada, numa pressa:

  • Há dias em que sinto a falta delas, para conversar, para embirrar, para me sentir gente, para o sangue não arrefecer, para não parecer um bicho bravo. Sei que há quem me chame assim, melhor diriam bicho sem dono, isso sim, que de dono algum eu sinto a falta, mesmo em dias sem graça nenhuma, como o de hoje. Quando assim é, ponho um laço no cabelo, como o que aqui vê. Coisas da solidão, essa porca que me atrapalha, por pouco tempo, juro. Felizmente tenho sempre alguém com quem falar, se quiser, claro, que falar com certa gentinha é pior que falar sozinha.

Mudou o tom de voz, poderia dizer, adoçou-o, e disse, pela primeira vez olhando-me de frente, disponível:

  • Está a ver a cor deste laço no meu cabelo? Está? Então já percebeu para quem costuma ir o meu voto.

Ajeitou o laço vermelho enquanto declarava:

  • Já fui uma rapariga jeitosa e bonita, não é para me gabar, antes de dar à vida este montão de anos. Não digo quantos, você adivinha, é mesmo espertalhona.

E já a levantar-se:

  • Gostei deste bocadinho a desenferrujar a língua. Gostei, sim senhora. Até amanhã.

Eu gostei de a ouvir, de ter começado a conhecê-la. Oxalá ela volte amanhã.

 

Licínia Quitério


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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One Thought to “Crónica de Licínia Quitério | Um laço vermelho”

  1. Maria Clara Pimentel

    Oxalá volte, sim. E possa ser inspiração para mais uma crónica tão saborosa quanto esta.

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