Crónica de Licínia Quitério | Pastelaria Edite

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje | Pastelaria Edite

por Licínia Quitério

 

Pastelaria Edite – era o que dizia o letreiro na cimeira da porta e montra. Um espaço acanhado para meia dúzia de mesas, um balcão ao fundo, em L, o lado menor junto à parede. Era exactamente aí que durante anos vi o senhor Pina a tirar bicas, em movimentos automatizados, a rodar o manípulo, a carregar no botão, a bater com força  duas vezes, duas, o recipiente a despejar o café molhado e espremido.

Os clientes, na sua maioria habituais, eram diligentemente atendidos pelo senhor Pina, com frases curtas, exactas, as palavras estritamente necessárias para o serviço que se queria atencioso, rápido e de boa qualidade. O senhor Pina fazia questão de tratar os clientes pelo nome sem esquecer o título académico, se o lograsse saber. Bom dia Menina Luisinha, bom dia Senhor Major Fernandes, Boa tarde Senhor Boaventura, boa tarde Senhor Doutor Sá e Sousa. Um mimo de tratamento.

Fazia equipa com o senhor Pina, o irmão, o senhor Neves, esse ocupado no serviço de sólidos de pastelaria propriamente dita, leia-se bolinhos, torradas, sandes, cachorros.

As coisas corriam bem aos irmãos, segundo parecia, e a Pastelaria Edite era um lugar tranquilo até àquela manhã em que deixou de o ser. Quando os clientes chegaram para a bica revigorante, em vez dos gestos maquinais e síncronos dos senhores Pina e Neves, depararam com uma estranha agitação de braços, e ouviram frases atiradas em alta voz de um para o outro. Mais surpreendente foi a presença de um terceiro elemento masculino atravancando o exíguo espaço por detrás do balcão. Felizmente não demorou muito o desassossego. O Pina voltou à máquina do café, o Neves às sandes e bolinhos. Quanto ao terceiro homem, assim me dá gosto referi-lo, estava silencioso, em pose rígida junto da máquina registadora. A esse dia seguiram-se outros mais ou menos pacíficos, mas deixando ouvir  suspiros e monossílabos reveladores de que algo não estava bem no duo que passou a trio. Veio-se a saber que o terceiro homem era cunhado dos dois, ou de um deles, não sei bem. A Pastelaria Edite ressentia-se da mudança e alguns clientes desistiram por causa de cenas pouco edificantes. Percebiam-se ameaças de confrontos físicos que não imagino como se resolveriam naqueles dois palmos de “back stage”.

Meses volvidos, já eu não frequentava os mesmos lugares, encontrei o senhor Pina. Estava muito magro, obviamente envelhecido, nervoso, a contar-me a triste saga familiar que o tinha levado a ser expulso do negócio. Já não era o mesmo senhor Pina que tirava bicas como quem respira, era um homem em lamento. Despediu-se uma, duas, três vezes, e repetiu: “A menina já viu o que é ser traído pela própria família, a menina já viu, já?”

Não consegui uma resposta assisada para o desgosto do senhor Pina. Nessa altura, eu ainda sabia pouco de traições. Hoje sei que da comunhão de sangue podem resultar as mais exacerbadas paixões, os ódios mais miseráveis. A vida foi-me ensinando.

      Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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2 Thoughts to “Crónica de Licínia Quitério | Pastelaria Edite”

  1. Clara

    Depois de tantos dias afastada de tudo -até do hábito de ler e pensar – é um imenso privilégio o facto da minha primeira leitura ser um texto de Licínia Quitério, o primeiro comentário que faço – ainda em modo de reambientação tímida – ser sobre esse mesmo texto. Obrigada, Licínia, pela sua Voz única onde força e magia estão sempre presentes. Obrigada por me fazer lembrar como a construção de um magnífico texto é um verdadeiro milagre.
    Clara

  2. tb

    A vida vai ensinando e nós, quando bons aprendizes, aprendendo. Gostei do conto e da forma de contar. Infelizmente vê-se muito acontecimentos desta natureza.
    Beijinhos

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