Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Lá isso…

Licínia Quitério

 

Lá isso…
por Licínia Quitério

 

Era uma vez um senhor doutor advogado, assim por extenso chamado, que nessa altura os causídicos eram poucos, respeitados, afamados, e supinamente necessários, já que a eles tinham de recorrer pobres e ricos, por mor de frequentes demandas. As razões dos pleitos, as mais vulgares, eram a má vizinhança de terras, a disputada serventia de águas, a questionada partilha de heranças, enfim, aquelas razões que, desde o princípio dos tempos, levaram os homens a guerrear e a mostrar a ferocidade maior de que são capazes, em nome dos “bens” a que julgam ter direito, sendo transitória a sua posse, mas disso não querendo saber.

Era uma vez, como ia dizendo, um senhor doutor advogado, pequenino, de chapelinho um pouco à banda, ligeiro, mordaz, decidido, um fura-vidas. Tinha fama e proveito de ganhar muitas causas, de ser, na barra dos tribunais, fluente, loquaz, brilhante. Muito simples, o senhor doutor, como diziam, deslocava-se a casa dos clientes, a lugares escusos e de mau acesso, sempre esforçado na verificação dos teres e haveres dos ditos cujos, disparando, para abreviar razões, em veemente interrogação, a casinha é tua, esta terra é tua, e aquela também, o chapelinho à banda, a oscilar de gozo, se as respostas fossem afirmativas. Entregavam-se os desavindos em suas mãos e palavras, pagavam custas e mais custas, honorários e mais honorários, mas, se de bastante maquia não dispunham, o senhor doutor sossegava-os, não tens umas librazitas, não tens umas librazitas, não, então fazes-me uma hipoteca da casita que não vale nada, não vale nada, mas já agora juntas-lhe a terra de semeadura, que o meu trabalho é para ser pago, é para ser pago. Mas ó senhor doutor, gemia o espoliado, não há mas nem meio mas, se não fosse eu não ganhavas a causa, se não fosse eu não ganhavas a causa e ficavas sem o olival, lá isso, senhor doutor, muito lhe agradeço, mas a casa, senhor doutor. Já o outro, com a mão na porta, o olhar em volta, a avaliar o valor do espaço e a dizer, amanhã passas lá pelo cartório, para a hipoteca.

Morreu há muito, o senhor doutor advogado, mas ainda hoje os herdeiros e os herdeiros dos herdeiros se digladiam pela posse de terras e prédios, que meia vila chegou a ser dele, o ilustre causídico, pessoa inteligente, trabalhadora e muito simples. Lá isso…

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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