Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Era tão engraçado

 

Era tão engraçado
por Licínia Quitério

 

Dele se pode dizer que não devia ter morrido tão cedo. Mal tinha passado do meio século quando a doença se mostrou, óbvia, ameaçadora. Não tinha paciência para estar doente. “Que má altura para ficar doente!”, lastimava-se. “É que não tenho tempo.”. E logo agora que a Isa acedera finalmente a casar-se com ele. Era jovem, banal e sentiu a atracção daquele homenzarrão sábio e carinhoso que lhe dispensava ternuras de pai e lhe acenava com promessas de amante que nunca tivera.

Há muito que ninguém o vira tão feliz. Ia finalmente ter a sua almejada Primavera. Depois de aquele ataque de tosse inesperado e violento que o deixou prostrado e ofegante, perguntou-lhe mais uma vez, com olhos húmidos de cachorro sem dono, se aceitaria casar com ele. A Isa olhou-o, tocou-lhe a mão febril. Repetiu a pergunta, ansioso. Então ela disse, num fiozinho de voz insegura: “Sim”. Por isso mesmo, tinha de acabar com aquelas estúpidas andanças de médicos, exames, hospitais. A Isa tranquilizava-o. O que era preciso agora era tratar-se, curar-se. Quanto aos preparativos do casamento, ela iria, calmamente, tratando de tudo.

Não melhorou. A doença cumpriu os seus desígnios, implacável. Ficaram os amigos que faziam coro com os gracejos que foi desfiando até ao último fôlego. Falava dos reposteiros de veludo que finalmente poria no escritório. Da última prestação a pagar ao Senhor Ezequiel pela jarrinha de Cantão que tanto namorara. Fazia planos para uma almoçarada com amigos. A refeição haveria de se fazer regar por um tinto monumental devidamente servido em duas colunas dóricas. Ou, pensando melhor, coríntias. Há dias que a Isa não aparecia. “Coitada, anda tão atarefada e eu aqui sem a poder ajudar.

Os amigos demoraram a abandonar o novo lugar do G. Juntos, em pequeno bando, caminharam em direcção à saída, lentamente, sob o Sol impiedoso, em silêncio dorido. Era como se, com o desaparecimento do G, as palavras, suas companheiras de brinquedos, também elas, se tivessem desconsoladamente recolhido. Foi já no limite do grande portão de ferro que um deles conseguiu soltar a voz e então, por instantes, não parou de dizer: “Era tão engraçado! Tão engraçado!”.

Nessa tarde quente e suada do Verão lisboeta, a Isa apareceu, sozinha, apagadita, rente às árvores mais altas do cemitério. Quando os rituais acabaram, afastou-se, ligeira. Um dia, quando o G não fosse mais do que um relevo na planura da sua previsível solidão, tentaria juntar as peças do puzzle que pudessem enformar aquele bom gigante cuja queda almofadou com o jeito possível de menina tardia.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


Leia também